segunda-feira, janeiro 09, 2017

Liberalismo e neoliberalismo: para quem ainda tem dúvidas

Ao contrário do liberalismo clássico, que contemplava um modelo puramente de mercado, deixado à iniciativa privada e à livre competição sem nenhuma intervenção do Estado (“mais mercado, menos Estado”), o neoliberalismo instala-se no próprio Estado. Wendy Brown argumenta que o neoliberalismo, em contraste com o liberalismo clássico, tende a empoderar cidadãos para os transformar em empreendedores; por conseguinte, em estabelecer uma ética sem precedentes de “cálculo económico”, a qual se aplica a actividades em favor do público que antes o governo garantia.


A prática do neoliberalismo submete as funções sociais do Estado ao cálculo económico: uma prática invulgar, que introduziu critérios de viabilidade nos serviços públicos, como se eles fossem empresas privadas, para ordenar os campos da educação, da saúde, da segurança social, do emprego, da pesquisa científica, do serviço público e da segurança sob uma perspectiva económica.

Consequentemente, o neoliberalismo retira a responsabilidade do Estado, fazendo-o renunciar às suas prerrogativas e avançando na direcção da sua gradual privatização.

Carlo Bordoni
(realces nossos)
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Fonte: Bauman, Zygmunt;  Bordoni, Carlo , Estado de Crise, Relógio D’Água, 2016, pp. 30-31.

domingo, janeiro 08, 2017

Fuga pela madrugada

Quando a cidade acordou
já não o encontrou.
Fugiu pela madrugada.

Ainda a névoa se levantava
nos frondosos bosques de sobreiros,
num frio e soalheiro dia de Janeiro,
pela via-férrea abandonada
já longe se encontrava.

Quando a cidade carcereira acordou,
Em vão o buscaram,
no Norte, no Leste e no Oeste.
Foi para o Sul que descuraram.

O Sul, sempre o Sul.
Mediterrânico Sul
que nunca amaram.

sábado, janeiro 07, 2017

Mário Soares (1924-2017)


Para que neste blogue fique registado: Mário Soares morreu esta tarde.

Muito haveria a escrever. Outros fá-lo-ão ou já estão a fazê-lo. Mário Soares ficará para a História, a nossa História, que será escrita e reescrita e escrita novamente. Os vindouros saberão.

Curiosamente a recordação mais aprazível que dele tenho é a das suas apresentações na RTP 1 da série da BBC, O Século do Povo, quando no final rematava com o seu enfoque no século XX português. Uma História que em grande parte viveu e em parte protagonizou. Sabia do que falava. Recordo assim o Mário Soares na sua faceta pedagógica. Foi um homem do Século do Povo. Foi um democrata e um amante da liberdade, pois claro. Neste século XXI, interveio quando pressentiu que o neoliberalismo representava uma ameaça à democracia e ao Estado social.

Parte agora, quando a democracia se encontra em crise aguda, como se vê pela ascensão dos demagogos e pela separação entre o poder e a política. 

Enfim, muito haveria a escrever. Outros fá-lo-ão e já estão a fazê-lo.

Até sempre Mário Soares.

O que amanhã sucederá, foge de sabê-lo

O que amanhã sucederá, foge de sabê-lo, e o dia
que o Acaso conceder, averba-o nos lucros.
E não desprezes a doçura do amor, nem as danças,
enquanto és jovem,

enquanto as cãs morosas estão longe
dos teus verdes anos. Por agora, procura o Campo de Marte
bem como os espaços onde à noitinha há doces sussurros,
à hora aprazada.

É então que, de um canto recôndito,
o amado riso denuncia a donzela escondida,
por lhe arrancares a ofertada jóia dos braços
ou o dedo que finge resistir.

                                             Horácio, Odes (I.9)


in Rocha Pereira (org. e trad.), Romana, Antologia da Cultura Latina, 6ª ed. Guimarães, 2010, pág.  197

sábado, dezembro 31, 2016

O Mediterrâneo, no Porto

Nestes dias caminhei pelo Porto. Não subi à Torre dos Clérigos, não entrei no Majestic, nem na livraria Lello & Irmão. Infelizmente as multidões bloqueavam as entradas. Limitei-me a flanar pela cidade, pela Ribeira e pela Foz. Contemplei o Douro e o Atlântico, mas a maior descoberta foi o Mediterrâneo. Tropecei na obra por acaso, na livraria Bertrand, quando folheava as Odes de Horácio, um livro caríssimo que me é caro, e que merece ser caro, na secção de poesia. O meu olhar desviou-se para outros livros de poesia mais baratos que lá estavam empilhados. Um livro prendeu-me a atenção: ostentava na capa o desenho de uma oliveira. Após vários regressos à livraria, e ao Mediterrâneo, de João Luís Barreto Guimarães, lá adquiri o livro desse poeta nascido no Porto. É que sempre que abria o Mediterrâneo o Mediterrâneo encontrava, em todo o seu esplendor, em todo o seu perfume, em toda a sua história e em toda a sua dor. O Mediterrâneo estava ali.

Valeu a pena vir ao Porto encontrar o Mediterrâneo.

***

sexta-feira, dezembro 30, 2016

Grandes aberturas: Criação


Sou cego, mas não sou surdo. E porque a minha desgraça não é completa ontem fui obrigado a ouvir, durante quase seis horas, um auto-intitulado historiador cuja descrição do que os Atenienses gostam de chamar «as Guerras Persas» era um disparate de tal ordem que, se fosse menos velho e tivesse mais privilégios, ter-me-ia levantado do lugar, no Odeon, e escandalizado Atenas inteira com a resposta que lhe daria.

A verdade é que eu sei qual foi a origem das guerras gregas. Ele não. Como poderia sabê-la? Como poderia um Grego saber uma coisa dessas? Passei a maior parte da minha vida na corte da Pérsia e ainda hoje, com setenta e cinco anos, sirvo o Grande Rei, como servi o seu pai, o meu querido amigo Xerxes, e, antes de Xerxes, o pai de Xerxes, um herói conhecido inclusivamente pelos Gregos como Dario, o Grande.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989

***

Assim começa a Criação, de Gore Vidal. Com a irritação de Ciro Spitama, filho de uma grega e de um persa, destacado na sua velhice pelo Grande Rei para ser embaixador da Pérsia em Atenas, onde passará os seus últimos dias. Ciro irrita-se com a descrição que ouve contar de Heródoto acerca dos feitos dos Gregos contra os Persas, numa conferência dada pelo historiador no Odeon. Trata-se de disparates e inverdades, a seu ver. Desta forma é dado o tom ao personagem que, ao longo de toda a história narrada ao seu sobrinho, Demócrito, não se coíbe de desmistificar e minimizar os feitos e as obras dos Gregos em relação aos feitos e às obras dos Persas.

Ciro tem razão, se pensarmos bem. Afinal que relatos persas nos chegaram desses encontros e confrontos? Porventura existiu algum Ésquilo ou algum Heródoto persa que enaltecesse as façanhas dos próprios Persas ou nos transmitisse o seu ponto de vista acerca dos factos? Os Persas não tinham as tradições escritas dos Gregos e as suas façanhas eram valorizadas doutra forma, que não a escrita. Por outro lado os historiadores, os poetas e os dramaturgos gregos, inauguraram uma velha tradição que ainda hoje, infelizmente, persiste nas narrativas dos historiadores actuais: a visão parcial dos factos; o enaltecimento dos feitos realizados pelos seus próprios povos. Desse chauvinismo manso não parecem os historiadores conseguir escapar. Aqui aplica-se um velho provérbio: é o olhar do dono que engorda a galinha. Por muito imparciais que tentem ser, os historiadores acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por trair essa intenção de imparcialidade, nalguma frase ou ideia que deixam inadvertidamente transparecer no seu “imparcial” texto.


Ciro Spitama é uma personagem brilhante e marcante no seu sarcasmo em relação aos feitos dos Gregos. Ele questiona e escarnece de uma civilização que por nós é unanimemente aclamada e da qual nos orgulhamos, pois é a raiz da nossa própria civilização. Nesta obra de Gore Vidal a civilização Grega é colocada no seu devido lugar, não só em relação à Persa, mas também em relação à Chinesa e à Hindu.

***

P.S. É uma grande obra, esta Criação de Gore Vidal. Perdoa-se-lhe a alocução latina “non sequitur” (pág. 332) no pensamento do persa do séc. V a.C. entre outros, poucos, anacronismos. Não chegam para a beliscar. 

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Os sábios e os políticos deste Mundo

Confúcio era um dos poucos sábios que fazem realmente perguntas para saber o que não sabem. Regra geral, os sábios deste Mundo preferem prender o ouvinte com perguntas cuidadosamente preparadas tendo em vista obter respostas que reflictam as opiniões imutáveis do sábio.

Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 477

Felizmente – ou infelizmente – o homem público acaba sempre por se confundir com o povo que dirige. Quando o general Péricles pensa em Atenas, está a pensar em si próprio. Quando ajuda a primeira, ajuda o segundo.


Gore Vidal, Criação, Dom Quixote, 1989, pág. 602

segunda-feira, dezembro 26, 2016

O fim de toda a educação

Sabemos já por Pascal e Montaigne que o fim de toda a educação consiste em tornar-nos capazes de estarmos sentados num quarto em silêncio. Ora, noventa por cento dos jovens, segundo as estatísticas já não são capazes de ler sem ouvir música ou espreitar de relance a televisão.

George Steiner, Quatro Entrevistas com George Steiner (por Ramin Jahanbegloo),  Fenda, 2006, pág. 90. (destaques nossos)

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