segunda-feira, julho 30, 2012

domingo, julho 29, 2012

Grandes aberturas: Crónica de uma Morte Anunciada



«No dia em que iam matá-lo, Santiago Nassar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava uma mata de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branda, e por uns instantes foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se todo borrado de caca de pássaros. «Sonhava sempre com árvores», disse-me a mãe, Plácida Linero, recordando 27 anos depois os pormenores daquela segunda-feira ingrata. «Na semana anterior tinha sonhado que ia sozinho num avião de papel de estanho que voava sem tropeçar por entre as figueiras», disse-me. Tinha uma reputação bastante bem ganha de intérprete certeira de sonhos alheios, desde que lhos contassem em jejum, mas não descobrira qualquer augúrio aziago nesses dois sonhos do filho, nem nos restantes sonhos com árvores que ele lhe contara nas manhãs que precederam a sua morte.»

Gabriel Garcia Márquez, Crónica de uma Morte Anunciada, Publicações Dom Quixote, 1995.

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A minha passagem preferida:

«Até então não tinha chovido. Pelo contrário, a Lua estava no meio do céu, e o ar era diáfano, e no fundo do precipício via-se a regueira de fogos-fátuos no cemitério. Do outro lado divisavam-se as sementeiras de bananas azuis ao luar, os pantanais tristes e a linha fosforescente do Caribe no horizonte.»
Op. Cit., pág. 60

sábado, julho 28, 2012

Olímpicos


Era bom que se seguisse o antigo costume de se estabelecer uma trégua enquanto os Jogos decorrem. Os Jogos não eram circo nem o deveriam ser. Mas como fugir à civilização do espectáculo? Também ela quer deixar a sua marca. Contudo sabemos que estes Jogos são intemporais, tendo já sido cantados por antigos poetas e patrocinados pelos deuses.

terça-feira, julho 24, 2012

Steiner, sobre o actual empobrecimento da educação


«É aqui que eu quero chegar. O que é importante é orientar a atenção de um aluno para aquilo que, de início, excede a sua compreensão, mas cuja estatura e fascínio irresistíveis o atraem. A simplificação, o nivelamento, a redução da fasquia, que dominam agora toda a educação, salvo a mais privilegiada, são criminosos. Descuram fatalmente capacidades que permanecem ocultas. Os ataques ao chamado elitismo escamoteiam uma condescendência vulgar para com todos aqueles que julgamos a priori serem incapazes de fazer melhor. Tanto o pensamento (o conhecimento, Wissenschaft, a imaginação a que se dá forma) como o amor exigem demasiado de nós. Tornam-nos humildes. Mas a humilhação e até o desespero face à dificuldade – depois de suarmos durante toda a noite, a equação ainda por resolver, a frase grega por compreender – podem irradiar com a luz do Sol.»

George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida, Relógio d’Água, 2009, pp. 60

segunda-feira, julho 23, 2012

Grandes aberturas: O Coração das Trevas



«A Nellie, uma iole de recreio, balançou a âncora sem o mais leve bulir das velas e imobilizou-se. A maré enchera, a calmaria era quase total e, sendo o nosso rumo rio abaixo, a única coisa a fazer era virar de ló e esperar que a maré mudasse.
O estuário do Tamisa espraiava-se à nossa frente como a embocadura de um canal de navegação interminável. Ao largo, o mar e o céu uniam-se sem uma cissura e, no espaço luminoso, as velas curtidas pelo sol das lanchas que vogavam ao sabor da maré pareciam estáticas em aglomerados vermelhos de velas repicadas, com revérberos de espichas envernizadas. Uma bruma cobria as margens baixas que avançavam para o mar numa planura que ia desaparecendo. O ar estava escuro sobre Gravesend e, ainda mais para trás, parecia adensar-se num negrume fúnebre, como se cismasse, melancólico e imóvel, sobre a maior, e também mais importante, cidade da terra

Joseph Conrad, O Coração das Trevas, Publicações Dom Quixote, 2009


Poderíamos pensar que a navegação dentro dos estreitos limites das margens fluviais seria mais segura do que a ilimitada navegação no mar alto, mas não é assim, e muito menos quando o rio por onde se navega penetra no coração das trevas. No Coração das Trevas a narrativa começa num rio e noutro rio prossegue na maior parte da obra, mas é a selva, sempre a selva - desconhecida, ameaçadora, impenetrável - que tolhe a nossa atenção. É na selva, território do medo, que se esconde a insanidade. Kurtz está no seu meio.

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«Os troços de rio entre meandros abriam-se à nossa frente e fechavam-se atrás de nós, como se a floresta tivesse atravessado paulatinamente a água para nos barrar o caminho. Embrenhávamo-nos cada vez mais profundamente no coração das trevas.»

Op. cit., pág. 68


«No entanto, eu também julgara a selva impenetrável, nas duas margens, e afinal havia olhos nela, olhos que nos tinham visto
Op. cit., pág. 82


«O burburinho de gritos furiosos e aguerridos emudeceu de repente, sucedendo-lhe, vindo das profundezas da floresta, um trémulo e profundo lamento de medo desolado e desespero absoluto, só comparável ao que imaginamos se seguirá à morte da derradeira esperança na terra
Op. cit., pág. 88


«Olhei em redor e, embora não soubesse porquê, garanto-lhes que nunca, nunca antes, esta terra, este rio, esta selva, a própria abóbada desse céu escaldante, me tinha parecido tão desesperados, tão sombrios, tão impenetráveis ao pensamento humano

Op. cit., pág. 105

Bird by Dead Can Dance on Grooveshark

domingo, julho 22, 2012

Redes hidrográficas em Titã



Os rios de Titã, um dos satélites de Saturno, são de metano líquido e as redes hidrográficas do planeta assemelham-se às terrestres, com os seus meandros. Existem também lagos de metano líquido. 

Progresso


«Não existe progresso na História, a não ser instrumental. Podemos matar muito mais gente com uma bomba H do que com um machado de pedra, e as matemáticas contemporâneas são infinitamente mais ricas, poderosas e complexas do que a aritmética dos primitivos. Mas uma pintura de Picasso não vale nem mais, nem menos, do que os frescos de Altamira ou Lascaux, a música balinesa é sublime e as mitologias de todos os povos revestem-se de uma beleza e de uma profundidade extraordinárias. Se quisermos situar então as coisas num plano moral, basta olhar à nossa volta para deixar logo de falar em «progresso». É um significado imaginário essencialmente capitalista, no qual até o próprio Marx se deixou apanhar.»

Cornelius Castoriadis, A Ascensão da Insignificância. Bizâncio,2012. pp. 105

Eis uma dos facetas do progresso:


Um macaco nu com armas atómicas e aceleradores de partículas, ébrio de tanto poder, julga-se um deus: "Now I am become death, the destroyer of worlds." (Robert Oppenheimer citando um texto Hindu, o Bhagavad Gita)


Há quem lhe veja tristeza e arrependimento no olhar. Impossível! São lágrimas de crocodilo. Ali mora o fascínio. E havia que cunhar rapidamente o feito com uma frase memorável. Fizeram o mesmo quando pisaram a lua. Uma frase ensaiada: "Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade". Na verdade todas as grandes caminhadas começam com um pequeno passo, até as guerras atómicas.

O futuro pode ser um lugar fascinante*.
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 *Para Braden Allenby, o futuro é "incerto, diferente, mais difícil, mas fascinante". Será?! O «progresso» deixa-nos apreensivos.

«O progresso é o negócio de toda a gente», dizem eles.


Se o progresso é o negócio de toda a gente e, acima de tudo, se é um negócio, então não pode ser para toda a gente. Mas enfim… o que dizer? É a «ética» dos negócios. 

sábado, julho 21, 2012

长颈鹿



«No nono mês do ano chia-wu do período Yongle (1414) veio um k’i-lin do país de Bengala e foi formalmente apresentado como tributo à Corte. Os ministros e o povo reuniram-se todos para o admirar e a sua ventura não tem limites. Eu, Vosso servo, ouvi dizer que quando um sábio possui a virtude da máxima benevolência de tal modo que ilumina os lugares mais escuros, então aparece um k’i-lin

Academia Imperial Chinesa, séc. XV, in Daniel Boorstin, Os Descobridores, Gradiva, 1994, pp. 188.


«Deveras foi criado um k’i-lin cuja forma tinha 4, 5 m de altura,
Com o corpo de um cervo e a cauda de um boi, e um chifre carnudo e sem osso,
Com manchas luminosas como uma nuvem vermelha numa névoa purpúrea.
Os seus cascos não pisam seres vivos, e nas suas perambulações escolhe cautelosamente o seu caminho,
Anda de modo imponente e no seu movimento respeita um ritmo,
A sua voz harmoniosa soa como um sino ou um tubo musical.
Meigo é este animal que em toda a Antiguidade apenas uma vez foi visto,
A manifestação do seu espírito divino ascende para a morada do Céu. »

Academia Imperial Chinesa, séc. XV in Daniel Boorstin, Os Descobridores, Gradiva, 1994, pp. 189.

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