sábado, novembro 26, 2016

Hoje chora a Sierra Maestra

Fidel Castro (1926-2016)

Hoje chora a Sierra Maestra. Morreu-lhe o filho mais querido.

De Fidel aprendi que "jamais poderá ser revolucionário aquele que não acredita no Homem." Infelizmente já não me coloco nessa categoria. Sinal de que estou a ficar velho. Talvez.

A Revolução é coisa de jovens.

sexta-feira, novembro 25, 2016

O sacrilégio do Rentes

Rentes cometeu um sacrilégio. Esse, o de juntar numa só frase, as palavras “refugiado” e “terrorismo”. O sacrilégio de pensar pela sua própria cabeça. O sacrilégio de considerar o “politicamente correcto” uma obnubilação aos que ousam exprimir livremente um pensamento claro e limpo, livre de conspurcações ideológicas e modas correntes.

Ora um pensamento livre não se deixa agrilhoar pelo "politicamente correcto".

Cá vai:

 Com os seus atentados e degolações, o terrorismo bastaria como séria ameaça, mas mesmo sem violência, pela simples presença e número, os refugiados contribuirão igualmente, senão para destruir a Europa, de certeza para abalar os seus alicerces, transformar as suas instituições, desestabilizar o equilíbrio e a variedade das sociedades que a compõem. Os refugiados do Médio Oriente não conhecem mais do que os regimes tirânicos e autoritários que, malgrado as suas imensas riquezas, só produzem sofrimento, atraso e miséria.

Será então razoável esperar que gente nada e criada nesses ambientes seja capaz, ou deseje, abraçar os nossos valores de liberdade e respeito quando, apesar do sofrimento, eles, como muçulmanos, consideram o seu modo de encarar a vida o único possível? E a sua religião única e obrigatória?

Rentes de Carvalho, A Ira de Deus Sobre a Europa, Quetzal, 2016, pág. 13.

sábado, novembro 19, 2016

As elites já não moram aqui

Ontem, 18/11/2016, António Guerreiro escreveu no Público uma das suas interessantes opiniões, agora contra os que usam o discurso da crítica das “elites”, sem que precisem com rigor de que elites se tratam. “Que elites são essas tão vagamente nomeadas?”, questiona ele, e refere que “Não é possível saber [que elites são essas], nem há nada a saber, porque este discurso [o da crítica das elites] tem o objectivo de uma palavra de ordem, um refrão, que nada diz de substancial, mas chama a atenção sobre quem o profere.” Mais adiante esclarece-nos que “a palavra “elite” de origem francesa, incorpora a originária raiz do verbo latino eligere, escolher”.

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Quem são as elites de hoje afinal? Quem são os escolhidos, os eleitos dos nossos dias? Não serão os que se podem evadir, descomprometidamente, de um mundo que se tornou demasiado superlotado, demasiado malcheiroso, demasiado insuportável, enfim, um mundo com demasiados outros, comuns mortais? Afinal não era Jean-Paul Sartre que afirmava que o Inferno são os outros? Mas atenção: ainda que possam e desejem apartar-se dos outros, as elites, para o serem, não se podem apartar do poder. Caso contrário que elites seriam? Elites sem poder? Trata-se de uma contradição nos seus termos. É o poder que define as elites, acima de tudo. Mas hoje, também acima de tudo, esse poder é um poder politicamente descomprometido, é um poder desterritorializado, e a sociologia das elites sabe-o bem e melhor do que ninguém.

Zygmunt Bauman, aborda o assunto na sua obra, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000. Afirma ele o seguinte:

Os operadores de capital da nossa época [a elite global de hoje] têm uma notável semelhança com os proprietários de terras pré-modernos que viviam longe das suas propriedades. A sua ligação com as localidades das quais retiram o excedente de produção é, no entanto, ainda mais ténue do que os laços que uniam aqueles proprietários fundiários às suas terras distantes.

Mesmo quando fisicamente ausentes e não integrando nem social nem culturalmente a localidade, os antigos senhores de terras eram assim mesmo proprietários fundiários, daí ser necessária uma certa preocupação em preservar a capacidade da terra em produzir riqueza, caso contrário secaria a fonte da sua riqueza e poder. No caso desses senhores de terras dos tempos pré-modernos, o poder era acompanhado de obrigações, ainda que diluídas, e a exploração andava de mãos dadas com algum tipo de solidariedade — ainda que frágil e pouco confiável — para com a sorte dos explorados. Já não é mais esse o caso ou pelo menos não tem que ser — e as pressões globais combinadas dos todo-poderosos mercados financeiro, accionista e bancário cuidam para que assim não seja.

O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, e torna-se cada vez mais “irreal” quando visto a partir do significado que a realidade tem para as pessoas que não integram a elite global e têm pouca oportunidade de juntar-se a ela. Uma nova habilidade para evitar, elidir e escapar substituiu o envolvimento na vigilância, no treinamento e na administração como recurso primordial e essencial do poder. Tornou redundante todo e qualquer compromisso — por mais benigna ou cruel a forma que assumisse. Sobretudo, a capacidade de evitamento tornou disponível a outrora suprema forma panóptica de envolvimento através do esforço de vigilância, treinamento e disciplina. O financiamento do controle de tipo panóptico é hoje considerado um gasto desnecessário e injustificável, irracional mesmo, a ser descartado ou, melhor ainda, completamente eliminado. O sinóptico — um panóptico tipo faça-você-mesmo, que seduz muitos a embasbacarem-se com poucos, em vez de contratar uns poucos para vigiar muitos — mostrou-se um instrumento de controlo muito mais eficaz e económico. Os remanescentes do velho panóptico ainda actuantes não visam o treinamento corpóreo nem a conversão espiritual das massas, mas a manter no seu lugar aqueles sectores das massas que não devem seguir a elite no seu novo gosto pela mobilidade.

As classes cultas do nosso tempo, produtoras e detentoras de saber [outra elite que Guerreiro critica], também se parecem às congéneres pré-modernas à época em que estas se postavam em segurança atrás das impenetráveis muralhas do latim, isolando-se da gente simples. Com efeito, o ciberespaço da web mundial é sob muitos aspectos o equivalente actual do latim medieval. Ela torna os integrantes das classes cultas pessoas sem território e fora do alcance daqueles que lhes são próximos no espaço físico, ao mesmo tempo que lança o alicerce tecnológico de um outro universo, um universo virtual que aproxima os membros da classe culta. Na qualidade de homens e mulheres de saber eles habitam o ciberespaço, no qual as distâncias são medidas por padrões inteiramente diferentes dos que são usados no espaço geográfico comum; no ciberespaço criam-se pistas independentes das rotas seguidas pelos outros e a sinalização é disposta de maneira apenas, quando muito, superficial e casualmente relacionada à cartografia e topografia usuais.

Zygmunt Bauman, Em Busca da Política, Zahar Editores, 2000 (adaptada), os destaques e sublinhados são nossos.

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As elites já não moram aqui. Moram em todo o lado, ou seja, não moram em lado nenhum. A extrema mobilidade é uma das suas características. A capacidade de morar em qualquer lugar, onde lhes aprouver, sem qualquer outra ligação de maior a esse lugar, localidade ou região, para além de ocuparem esporadicamente um dos seus condomínios aí localizados, é outra das suas particularidades. O compromisso político com as sociedades que as viram nascer deixou de ser considerado pelas elites como uma obrigação, um dever ou uma necessidade de sobrevivência, ou ainda uma condição para a obtenção de poder. A possibilidade de evasão ou “evitamento” por parte das elites trata-se antes de uma libertação.

As novas elites dispensam representação e furtam-se à taxação.

The Times They are a Changing. Really?! A Nova Ordem Trumpeana

Tudo começou quando se cantava uma Nova Ordem Mundial no rescaldo da antiga (com a derrota da URSS no Afeganistão e o seu fim, surpreendente, na época). Seguiu-se, breve, uma nova ordem unipolar dominada pela hiperpotência americana. A América era grande outra vez. Essa nova ordem foi uma ordem de novas guerras e rebeliões em países aparentemente distantes da Europa, mas não tão distantes quanto isso. Durante os conflitos, potentes meios de comunicação globais não deixavam de mostrar as imagens dos infernos terrestres (tivemos bombardeamentos em directo comentados com todo o profissionalismo) e imagens dos paraísos terrestres, chegando tais imagens aos quintos dos infernos terrestres. E os que viviam no inferno dos conflitos, e os que podiam, rapidamente de lá queriam sair, legitimamente ou ilegitimamente. E saíam. E para onde rumar, mesmo com risco de vida, se não para os paraísos terrestres mais próximos.

Carontes bem pagos ajudavam à travessia agora inversa, do Hades ao Éden, das terras dos mortos para as terras dos vivos, terras prometidas de vida farta e plena. Então os novos bárbaros começaram a chegar, ousando atravessar desertos e fossos dantescos, mediterrânicos. Os novos bárbaros serão os novos europeus (lê-se numa revista), pois claro (afinal os velhos europeus – nós - também não fomos  já velhos bárbaros?).

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Schengen rebentou como uma barragem prenhe de água até não poder mais. O descontrolo instalou-se nas fronteiras externas da “União” e depois nas fronteiras internas. Rios de imigrantes e refugiados começaram a penetrar os caminhos da Europa em direção ao Norte. A figura do imigrante clandestino, ilegal, desapareceu. Eram todos refugiados. Um governo socialista francês fechou os olhos à construção de uma cidade de barracas num extremo do seu território, frente à fossa mais estreita e menos profunda, e por isso mais transponível, do Canal da Mancha. Formou-se então essa enorme “selva” de habitações precárias – uma “selva” em plena Europa continental, frente a esse outro paraíso mais paradisíaco, aos olhos de quem procura, não refúgio, mas outra coisa qualquer, que é a Grã-Bretanha. Na verdade, aqueles refugiados de Nord-Pas-de-Calais, já não fugiam da guerra, não procuravam refúgio, procuravam sim outra coisa. Pois afinal no paraíso francês não havia guerra, não é verdade? Então o que procuravam aqueles refugiados? Não haviam alcançado já a paz nas terras de França? Não se encontravam já distantes dos infernos terrestres? A constituição da “Selva” em Nord-Pas-de-Calais teve um efeito desconfortável no subconsciente de muitos dos que viviam além Mancha. Afinal, meu Deus, meu Deus, o que vinha aí. Epílogo: Venceu o Brexit! O Reino Unido, desunido, abandona o barco Europeu, qual escaler lançado ao mar em momento de aflição ou invasão, quando o grande navio já mete água por todo o lado.

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Meses depois, do outro lado do Atlântico, vence um Trump. Um grosseiro. Outro rombo no casco do navio Ocidental.

O Euro afunda-se agora face ao dólar, na iminência de uma subida das taxas de juro diretoras americanas e a Itália ameaça uma evasão da zona Euro, aprofundando mais ainda a eterna crise do Euro. Crise que só terminará, diga-se de passagem, com o fim do Euro. Em suma: o Euro é a crise.

Por tudo isto são por isso agora mais sonoros os brados dos profetas da desgraça e das cassandras, anunciando o fim do Euro e a derrocada do projeto Europeu. O fim de um mundo que se queria novo e o começo de um novo mundo que afinal é o velho.

The times are changing.

Mas o vento que por aqui sopra, nem cheira bem, nem está de feição.

 Eis a nova ordem trumpeana.

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quinta-feira, novembro 10, 2016

Trump, trump, bang, bang.

Eis que o Imperador Trump tomará o ceptro e irá sentar-se no trono da América. Será que desta vez a América irá deixar o mundo em paz? E será que o mundo irá deixar a América em paz? Afinal são muitos os que acusam de inacção a América quando alguns conflitos despontam. Depois, mais tarde, vêm acusar a América de querer ser o polícia do mundo e de se querer substituir ao papel da ONU com a qual rivaliza no intervencionismo “salvador” do mundo.

O Trump quer fazer da América grande outra vez. Mas se pensarmos bem, foram as grandes guerras que fizeram a grandeza da América.

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Estou curiosíssimo para ver que cavalos vai Trump nomear, qual novo Calígula, imperador louco dos tempos pós-modernos. Avizinham-se tempos interessantes para a globalização galopante, com o Brexit e agora com o presidente Trump a agitar a bandeira do proteccionismo e das fronteiras fechadas. Tudo parece indicar que o galope da globalização vai ser travado, mas é difícil crer nisso, tal a velocidade que assumiu o processo. Petróleo a queimar, armas a disparar e corpos a tombar (muitos deles negros, às mãos armadas da polícia) continuarão a ser garantidos na terra do Tio Sam e, provavelmente, noutros lugares do mundo. Prosseguirão as alterações climáticas, a todo o gás, assim como o aquecimento global. Preparemo-nos para o pior, esperando que o pior não aconteça. Eis os tempos do cowboy  americano, de revólveres na mão, disparando as suas armas em todas as direcções: trump, trump, bang, bang.



domingo, novembro 06, 2016

A natureza das coisas

Todas as coisas acabam mal, no fim. Mas acabar é a natureza das coisas.

Gore Vidal, Criação, Publicações Dom Quixote, 1981, pág. 68.

sábado, novembro 05, 2016

O velho humanismo: uma mistura para vomitar. Mas será o novo melhor?

O velho humanismo afasta-se e desaparece. A nostalgia atenua-se e é cada vez mais raro que nos voltemos para rever a sua forma estendida no caminho. Era esta a ideologia da burguesia liberal. Inclinava-se sobre o povo, sobre os sofrimentos humanos. Cobria, sustentava a retórica das almas belas, dos grandes sentimentos, das boas consciências. Compunha-se de citações greco-latinas polvilhadas de judaico-cristianismo. Um cocktail assombroso, uma mistura para vomitar. Só alguns intelectuais (de “esquerda” – mas ainda haverá intelectuais de direita?) mantêm ainda o gosto por esta bebida triste, nem revolucionários, nem abertamente reaccionários, nem dionisíacos, nem apolíneos.  

É, assim, para um novo humanismo que devemos tender e esforçar-nos, isto é, para uma nova praxis e um outro homem, o da sociedade urbana. Escapando aos mitos que ameaçam esta vontade, destruindo as ideologias que desviam este projecto e as estratégias que afastam este percurso. A vida urbana ainda não começou. Nós realizamos hoje o inventário dos despojos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade, cujas ideias e “valores”, os tabus e as prescrições eram, em grande parte, de origem agrária, marcados por uma dominante rural e “natural”. Do oceano campesino emergiam custosamente esporádicas cidades. A sociedade rural era (ainda é) a sociedade da não-abundância, da provação aceite e rejeitada, dos interditos que ordenam a regulamentam as privações. Esta também foi, todavia, a sociedade da Festa, mas esse aspecto, o seu melhor, não foi retido, e era ele que seria necessário ressuscitar e não os mitos e os limites!

Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, Letra Livre, 2012, pág. 110.

A vida urbana já começou. Lefebvre acusa o velho Humanismo burguês e aponta para um novo, ironicamente ainda mais aburguesado (não é afinal um humanismo de burgo aquilo que ele nos propõe?). Trata-se no entanto de uma fuga para a frente. Ora o novo humanismo que ele nos propõe ainda é pior. Sabemo-lo agora. Trata-se de um humanismo urbano que descarrila na desumanidade das cidades sem fim. É o humanismo das ruas nocturnas, frias e vazias que produziu os sem-abrigo deambulantes e envergonhados que povoam as grandes cidades, verdadeiras sepulturas do espírito humano. À festa rural circunscrita opôs-se o frenesim festivo e consumista, urbano e omnipresente. À contenção da sociedade da não-abundância, sobrepôs-se o desperdício da sociedade da abundância, incontida, desregrada, infrene e insustentável. Se a dominante rural era “natural” e idílica, a urbana é artificial, insana e doentia. Trata-se de uma dominante mecânica. Um irónico humanismo de máquina.

Somos hoje prisioneiros de um quotidiano sistematicamente medido e controlado pelas máquinas do tempo, essa marca do novo humanismo. Vivemos o totalitarismo do tempo maquinal, em sociedades-máquina (e em cidades-máquina), onde os vizinhos não se conhecem. Nas sociedades humanistas urbanas defendidas por Lefebvre marchamos todos a toque de caixa. Alguns de olhos sonâmbulos ainda entoam loas a esse novo humanismo, nas novas manhãs urbanas que agora cantam. Um canto desafinado.

Profundo

Caminho durante horas a fio, desviando-me esporadicamente de um borrão de merda de cão.

Don Delillo, Zero K, Sextante, 2016, pág. 264

Delillo caminha pelas cidades, de mãos nos bolsos, ensimesmado, de olhos postos no passeio onde grassa a merda de cão. Leio noutro lugar que os animais domésticos superam já os animais selvagens (*), em número e em massa (omite o narrador, por certo, os insectos, nessa assumpção desesperante). Triste humanidade, rendida a uma natureza artificial que ela mesma criou. Homo Deus nos tornámos! Um pesadelo! Há seres humanos em excesso à superfície da Terra e animais domésticos também. O próprio Homem é já um animal doméstico. E ainda há quem defenda a paródia do Humanismo - esse ser prodigioso que é o Homem - mesmo depois de constatar todo mal que o homem (sim, com letra pequena!) faz a si mesmo e toda a destruição que inflige no jardim que lhe foi legado. Sim, venham de lá agora dizer que este discurso apoia a acção de genocidas que se entretêm a erradicar seres humanos da face Terra. Não se trata disso. Para melhorar o mundo, não tenhamos dúvidas, o primeiro passo é erradicar os genocidas.
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(*) Yuval Harari, Homo Deus: A Brief History of Tomorrow, Harper Collins Publishers, 2016

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