terça-feira, março 08, 2011

A “deolindalização” de uma geração ou Da dificuldade dos recém-licenciados em arranjarem emprego

Há uns anos atrás, o então Ministro da Educação, David Justino, avisou que as portas do Ensino iriam fechar-se. Avisou que haviam demasiados professores e que era preciso reduzir o número de entradas nessa profissão. Posteriormente, Sócrates prossegue nessa via, tentando limitar ao máximo o acesso à profissão por novos candidatos, chegando a introduzir mecanismos de barragem à entrada da carreira de professor, como a prestação de provas escritas selectivas, e desincentivos, como a retirada da remuneração aos grupos de estágio profissionalizante nas escolas. Simultaneamente, promovia-se a política baseada no princípio de “por cada duas saídas da função pública, apenas uma entrada”. Os sinais estavam portanto aí para quem os quisesse ver.

O Ensino nas escolas básicas e secundárias deixou de funcionar como válvula de escape para as “fornadas” de licenciados que todos os anos saíam das universidades e politécnicos. Simultaneamente, o Tratado Bolonha reduziu o período de formação de licenciados de 4 anos para 3, ou seja, num curto período o número habitual de licenciados à saída das universidades aumentou consideravelmente, quando se reduziam as oportunidades de trabalho no sector Estado.

O resultado está à vista agora em 2011: a “deolindalização” de uma geração.

A crise pressentida há duas décadas atrás

David Harvey, um dos marxistas mais determinados e esclarecidos da nossa época, já em 1987 parecia adivinhar o que aí vinha:

There abundant cracks in the shaky edifice of modern capitalism, not a few of them generated by the stresses inherent in flexible accumulation. The world’s financial system – the central power in the present regime of accumulation – is in turmoil and weighed down with an excess of debt that puts such huge claims on future labour that is hard to see any way to work out of it except through massive defaults, rampant inflation, or repressive deflation.”

David Harvey (1987), ‘Flexible Accumulation through Urbanization: Reflections on “post-modernism” in the American City’, Antipode 24: 300-326.


Parece que Marx se enganou, mas não em tudo. Não se enganou, por exemplo, na questão das crises cíclicas do capitalismo e as suas consequências na economia das nações.

segunda-feira, março 07, 2011

As línguas em vias de extinção


Pieter Bruegel "O Velho", Torre de Babel, 1563

Steiner lamenta o desaparecimento das línguas, que considera um dano irreparável, tão ou mais irreparável do que a extinção das espécies. E a quem atribui ele a potenciação deste facto? Ao “mercado de massa” e à “tecnologia da informação”. Outros chamam-lhe capitalismo e globalização.
Na verdade vai tudo dar ao mesmo.

***

«Sustentei em After Babel (1975) que a multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis outrora faladas nesta Terra – e das quais muitas desapareceram hoje, ou se encontram em vias de extinção – não é, como as mitologias e alegorias do desastre entendem, uma maldição. São, pelo contrário, uma bênção e um motivo de regozijo. Cada uma, entre todas as línguas, é uma janela que abre sobre o ser, sobre a criação. Uma janela como nenhuma outra. Não há línguas “menores” por reduzido que seja o seu quadro demográfico ou o seu meio. Certas línguas faladas no deserto do Calahari traçam ramificações do conjuntivo mais numerosas e mais subtis do que as que encontramos em Aristóteles.»

George Steiner (2008); Os Livros que Não Escrevi, Gradiva, pág. 97
(…)

«A verdadeira catástrofe de Babel não é a divisão das línguas: é a redução do discurso humano a meias dúzia de línguas “multinacionais” planetárias. Esta redução, formidavelmente potenciada pelo mercado de massa e pela tecnologia da informação, está hoje a remodelar o globo. A megalomania tecnocrático-militar, os imperativos da avidez mercantil, estão a tornar o vocabulário e a gramática de um anglo-americano estandardizado num novo esperanto. Devido às suas dificuldades, o chinês não poderá usurpar esta triste soberania. E quando a Índia o fizer, a sua língua será já uma variante do anglo-americano. Por isso houve um simulacro tão inquietante como infame do mistério de Babel na queda das torres gémeas do World Trade Center no 11 de Setembro.»

George Steiner (2008); Os Livros que Não Escrevi, Gradiva, pág. 100

quinta-feira, março 03, 2011

Ainda sobre o descontentamento do mundo

O filósofo francês Gilles Lipovetsky lá tenta pôr água na fervura ao analisar a sociedade hipermoderna. Afirma ele que “a depreciação dos valores supremos não continuará sem limites, o futuro continua aberto” (2011 [2004], pág. 106). Ou seja, ainda há esperança, ainda é possível inverter o rumo que nos arrasta para o fim. Como se não houvessem pontos de não retorno. Como se os limites a não transpor, e a partir dos quais não se pode voltar atrás, se fossem afastando sempre à nossa frente. Como se fosse possível trazer à vida as culturas tribais com todo o seu património perdido, a sua arte, a sua língua…perdidos para todo o sempre. Como se fosse possível voltar a ver os dodós nas ilhas Maurícias.

Não se trata só de uma “depreciação” de valores. Trata-se de uma destruição de valores.

Lipovetsky esquece a geografia. Como se todas as sociedades do mundo fossem hipermodernas. A maior parte delas não é. O mundo está longe de ser plano. Se há sociedades que são realmente hipermodernas, conforme lhes chama, outras ainda vivem na Era Moderna, outras na Idade Média e outras na Idade da Pedra - sociedades de caçadores recolectores encontradas nas selvas, ameaçadas agora pelas sociedades hipermodernas, hiperconsumistas, hiperdestrutivas.

Esta é uma visão pessimista e niilista, quase apocalíptica, eu sei. Mas assim é. O mundo transforma-se, sempre se transformou, na verdade. Mas esta transformação, hoje, abeira-se da destruição. Estamos cada vez está mais longe de um paraíso na Terra. Estamos cada vez mais longe do Paraíso.

***

Fica a citação completa de Lipovetsky:

Ninguém negará que o mundo, tal como está, provoca mais inquietação do que um optimismo desenfreado: alarga-se o abismo Norte-Sul, as desigualdades sociais aumentam cada vez mais, o mercado mundializado reduz o poder que as democracias têm para se governarem. Mas será que isto nos autoriza a diagnosticar um processo de «rebarbarização» do mundo, no qual a democracia não é mais do que uma «pseudo-democracia» e um «espectáculo comemorativo»? Seria subestimar o poder de autocrítica e de auto-correcção que continua a habitar no universo democrático liberal. A era presentista está tudo menos fechada, encerrada em si mesma, dedicada a um niilismo exponencial. Porque a depreciação dos valores supremos não continuará sem limites, o futuro continua em aberto. A hipermodernidade democrática e mercantil não disse a sua última palavra: ela apenas está no início da sua aventura histórica.”

Charles, Sébastien; Lipovetsky, Gilles (2011 [2004]); Os Tempos Hipermodernos, Edições 70, páginas 105-106.

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segunda-feira, fevereiro 28, 2011

O olhar crítico de Orlando

"É duvidoso que o turismo sirva a aproximação compreensiva dos homens e é certo que, para além de uma importante fonte de divisas estrangeiras, traz consigo vários malefícios. O turista olha com sobranceria o «indígena» que o serve, desloca-se em rebanhos, não tem iniciativa para descobrir os valores locais, tanto da natureza como da tradição. Esta sofre o mais rude embate, pois tudo tende a descaracterizar-se ou a imitar aquilo que foi espontâneo e desprezado. O custo de vida sobe e torna-se incomportável para os nacionais, sempre mal servidos onde prepondera a única clientela de interesse - os estrangeiros."

Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 6.ª ed., Livraria Sá da Costa, 1991.

domingo, fevereiro 27, 2011

Razões para ser crítico

Ser descontente é ser homem.

Fernando Pessoa, Mensagem


Como podemos nós estar contentes com o mundo, tal qual se nos apresenta hoje? Há mil razões para ser crítico. Não compreendo por isso os contentes deste mundo. Os alinhados do capitalismo. Os felizes com tanta infelicidade, quando caminhamos cada vez mais rapidamente para o precipício. Esse precipício que nos chama e ao qual hipnoticamente respondemos, avançando paulatinamente na sua direcção. É preciso travar a lenta marcha que a ele nos conduz. É preciso ser crítico. Há fortes razões, económicas, sociais e ambientais que reforçam o nosso descontentamento.


Podemos sentir-nos contentes quando destroem florestas equatoriais inteiras para as transformar em lucrativos palmeirais ou em extensos desertos verdes de soja?

Podemos sentir-nos contentes com o aumento das desigualdades socioeconómicas ao nível planetário, com o depauperamento de vastas camadas da população mundial, com o desemprego, só para alimentar a injusta concentração de riqueza nuns poucos?

Podemos sentir-nos contentes com a extinção das espécies e das tribos das florestas sempre verdes, com a sua rica cultura?

Podemos sentir-nos contentes com a transformação em mercadoria do planeta inteiro e de tudo o que ele contém?

Podemos sentir-nos contentes com a continuada exploração do Homem pelo Homem?

Podemos sentir-nos contentes com o aquecimento global e com as alterações climáticas?

Enfim, poderia continuar, ad aeternum, com estas questões. Mas sabem que mais? Há quem esteja contente. É contra esses e contra o sistema que defendem – o neoliberalismo - que deveremos dirigir o nosso descontentamento e assestar as nossas armas. É preciso desacreditá-los. Há que ser crítico portanto.

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

A avançada neoliberal sobre a educação

A ideologia neoliberal defende que deverá ser o mercado a ditar as regras da sociedade e não o contrário (Encyclopedia of Human Geography, Sage, 2006, pág. 330).

Neste momento a educação universitária está na mira de grupos de interesses neoliberais, em particular, nos países do Ocidente, com destaque para a Itália e Reino Unido. A grande questão que se coloca é a seguinte: quem deverá suportar os custos com a educação dos jovens universitários e investigadores: os contribuintes, ou seja, a sociedade no geral, ou os próprios estudantes e investigadores? Acontece que esta segunda hipótese – a de serem os próprios estudantes e suas famílias a terem de suportar os custos dos seus estudos – vem acentuar as desigualdades de oportunidade entre estudantes ricos e estudantes pobres e veda o acesso ao ensino superior a muitos jovens dos grupos socialmente mais desfavorecidos que não terão outra escolha a fazer senão a de trabalhar, abandonando dessa forma os estudos. Além disso, contribui para perpetuar uma estrutura social desigual e para obstaculizar a mobilidade social.

Aventa-se a hipótese, no Reino Unido e em Itália, dos estudantes das famílias sem condições financeiras contraírem dívidas juntos dos bancos para prosseguirem estudos. À entrada da vida profissional, estes estudantes, ao contrário dos mais abastados, terão de suportar o fardo da dívida, mais os juros, a pagar aos bancos, como se fossem escravos ou servos da gleba.

Neste domingo que passou (20-02-2011), na TVI, o professor Marcelo Rebelo de Sousa foi questionado por três estudantes de 18 anos sobre o prosseguimento de estudos, a uma das quais o professor disse que actualmente a licenciatura de três anos equivale a um antigo bacharelato, tendo-a aconselhado a realizar o mestrado, dado que esse grau, actualmente, equivale a uma antiga licenciatura. Ora tal significa uma coisa muito simples: o ensino superior degradou-se na sua qualidade a partir do momento em que o Tratado de Bolonha implicou a redução do período da licenciatura para três anos e os Estados se furtaram a terem de suportar a educação superior dos estudantes por mais um ano.

Mas o que é mais significativo foi o professor ter dito à estudante que, se não tivesse condições financeiras para realizar o mestrado, então teria de trabalhar em simultâneo, ou então, uma outra hipótese, dizemo-lo agora nós, passaria pela contracção de uma dívida junto a um banco ou instituição financeira para poder pagar os seus estudos. Pressupõe-se, por outro lado, que se a estudante, ou a sua família, tivessem condições financeiras, ou seja, se pertencessem às elites ou a “boas famílias”, então a jovem poderia dedicar 100% do seu tempo ao estudo e à investigação, o que a colocaria em vantagem relativamente aos jovens que não se encontram a estudar a tempo inteiro, por terem de trabalhar.

Ora este sistema favorece os mais ricos e penaliza os mais pobres. O filho do rico, tem o caminho aberto e o do pobre (aquele a que a nossa sociedade apelidou tristemente de “borra botas”, porque os que borravam as botas trabalhavam a terra e eram rudes) só tem pela frente obstáculos e está condenado a ser pobre e endividado.

Quem ganha com tudo isto? É simples: as elites, que perpetuam desta forma a sua posição no topo da estrutura social, e os bancos, que ganham novos mercados, à custa destes novos escravos do século XXI que são os endividados.

Quem perde? Os pobres e a maior parte da sociedade.

[Ao que um neoliberal responderá: A sociedade? O que é isso? Isso existe? Para a neoliberal Margaret Tatcher a sociedade era uma construção artificial, ou seja, não existia.]

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