sábado, junho 03, 2017

A incursão nocturna na Feira do Livro de Lisboa e os escritores judeus

Ontem realizámos a nossa primeira incursão nocturna na Feira do Livro de Lisboa. Missão: localizar rapidamente e sem ajuda de qualquer mapa ou GPS o pavilhão da Bertrand e adquirir por uns módicos 12,25 € o famoso livro do Prémio Nobel da Economia, Daniel Kahneman, Pensar Depressa e Devagar (Temas e Debates/Círculo de Leitores), anunciado como o livro do dia da editora e por isso mais barato. Soubemo-lo pela consulta prévia do portal da Feira, na Internet (http://feiradolivrodelisboa.pt). Subimos impelidos pela fresca brisa nocturna a avenida da esquerda por entre os pavilhões das editoras, levados pelo instinto e pela memória de outras feiras, e fomos certeiros. A Bertrand estava no sítio habitual com vários pavilhões e um amplo balcão corrido, exclusivo para pagamentos, com várias caixas. Missão cumprida, deambulámos depois por entre os pavilhões das editoras até ao cume da Feira onde estacionava uma convidativa carripana de farturas (na verdade estas carripanas encontram-se estacionadas em vários cantos estratégicos, no sopé e no cume da Feira).

Em casa, abro o livro, dou um relance nas badanas, na capa e no verso: Daniel Kahneman é judeu - outro judeu. Salto a introdução (ao diabo com as introduções, deixo-as quase sempre para o fim) e começo a ler o primeiro capítulo. Descubro que o livro tem duas personagens – o Sistema 1 e o Sistema 2. Torço o nariz. Que raio de nomes. Mas rapidamente se tornou claro que poderá ser uma leitura interessante, ou então será mais um livro que irá repousar na anti-biblioteca. O Cisne Negro do Taleb, já lá está. Foi lido até pouco mais de metade com algum interesse, depois com alguma resistência e depois com alguma penosidade: logo naquelas páginas iniciais se percebe o leimotiv, o motto - “shit happens” – que é apresentado em looping, com inúmeros exemplos, quase até à exaustão. Destino: anti-biblioteca. A leitura será retomada noutro dia, talvez para as calendas. Espero que não ocorra o mesmo com o livro do Kahneman.

Afinal os judeus, por razões históricas, religiosas e civilizacionais, parece que se especializaram na lapidação de diamantes, na banca e na escrita – são um dos povos do Livro -, e na verdade escrevem obras cativantes como diamantes. Quase sem me dar conta dou com a casa repleta de livros de judeus, estando inclusivamente a ler em simultâneo várias obras deles: Homo Deus, do Yuval Harary (HarperCollins Publishers),  George Steiner em The New Yorker (o da Gradiva), e agora este do Kahneman.

Nas prateleiras, repousam livros de Hannah Arendt, Elias Canetti, Zygmunt Bauman, Eric Hobsbawn, Stefan Zweig, George Steiner, Tony Judt e se calhar outros com os quais ainda nem me deparei, também escritos por gente da diáspora. Outros li, como Primo Levi, que não queria deixar de referir aqui. A todos eles tiro o meu chapéu. Grande gente, grande povo e grande civilização que culturalmente nos enriquece a todos. Como foi possível termos expulsado outrora esta gente?

Bem hajam! (Ops, não é este o título da obra de outro judeu que também li recentemente?).

segunda-feira, maio 22, 2017

O Alien: Covenant e a Guerra dos Tronos

No Alien: Covenant decidiram os argumentistas, como agora é moda, aproveitar e misturar cenas similares a outras histórias que fizeram história: nele encontramos a indomável criatura que escapa ao seu criador, virando-se contra ele, coisa que já vem do tempo do Dr. Frankenstein e provavelmente antes disso, e que se repete vezes e vezes sem fim, do Robocop ao Terminator, antes e depois. Temos também um robot psicopata, qual Hannibal Lecter, que esconde as suas intenções assassinas sob uma face inexpressiva, quiçá até bondosa e uma falsa atitude protectora, até se revelar na sua extrema agressão. E uma cena no banho, à Psico, do velho Hitchcock, mas agora com um casal bem amparado em vez de uma menina desamparada e de grito estridente.

Argúcia do realizador: receitas antigas para novos proventos.

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Já na Guerra dos Tronos a misturada é também evidente: velhas epopeias, ilíadas e odisseias, histórias medievais, as histórias fantásticas de Tolkien, com dragões e anões, mas agora condimentadas com erotismo e soft porn (receita das Sombras de Grey?), relações incestuosas, sadismo, zombies e grosserias. Enfim, um melting pot que vende.

domingo, maio 21, 2017

A realidade sofre

«When examining the history of any human network, it is therefore advisable to stop from time to time and look at things from the perspective of some real entity. How do you know if an entity is real? Very simple – just ask yourself, ‘Can it suffer?’ When people burn down the temple of Zeus, Zeus doesn’t suffer. When the euro loses its value, the euro doesn’t suffer. When a bank goes bankrupt, the bank doesn’t suffer. When a country suffers a defeat in war, the country doesn’t really suffer. It’s just a metaphor. In contrast, when a soldier is wounded in battle, he really does suffer. When a famished peasant has nothing to eat, she suffers. When a cow is separated from her newborn calf, she suffers. This is reality.»
Yuval Noah Harari


Yuval Noah Harari, Homo Deus, A Brief History of Tomorrow, HarperCollins Publishers, 2017

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Yuval Harari, testa a realidade pelo sofrimento. Quer saber se uma entidade é real? É, se apresentar um potencial de sofrimento. Caso contrário estamos a falar de abstracções, metáforas, realidades intersubjectivas, porém, não da realidade objectiva. Essa sofre. É um pensamento com similitudes ao pensamento cartesiano. O “penso, logo existo” de Descartes é substituído pelo “sofro, logo existo”. No entanto Harari circunscreve esta ideia à história das redes de relações humanas - the history of any human network. Não aplicou o método de Descartes – a dúvida em relação à fiabilidade dos sentidos na leitura de toda realidade. Descartes viu-se então só com o seu pensamento e, como não podia duvidar que estava a pensar, deduziu que existia porque estava a pensar.

A realidade para Yuval Harari não é um pensamento, é um sentir. O sentimento vem antes do pensamento, e vem depois. Ou vem sem que exista pensamento algum.

Porém, cogitatio est. O pensamento existe. (Ortega y Gasset)

sexta-feira, maio 19, 2017

Como Portugal criou o primeiro império global

«Este uso do terror será grandioso para a obediência a Vossa Alteza sem necessidade de os conquistar»
Afonso de Albuquerque

Roger Crowley narra-nos a impressionante história da entrada dos portugueses no Índico no início do século XVI. Como Portugal criou o primeiro império global? Lido o livro, a resposta à questão é extremamente simples. Portugal criou o primeiro império global através do terror. Um terror que aplicou com persistência e tenacidade. Onde quer que surgissem no mar, as enfunadas velas brancas com a vermelha cruz de Cristo pintada, a população dos lugares costeiros debandava. Fomos terroristas, piratas e corsários e aplicámos todo o hardpower para dominar a costa do Malabar, da África Oriental, do Golfo Pérsico e mais além. Chegámos a penetrar no ardente Mar Vermelho e ousámos trepar e atacar as muralhas de Adém. Fomos longe demais. O espírito que nos movia no início do século XVI era ainda o da cruzada medieval. O objectivo era matar o Islão no berço, passar o mouro à espada, sem dó nem piedade ou esmagá-lo por todas formas possíveis e imaginárias. Queimámos, esquartejámos, empalámos, enforcámos, retalhámos, massacrámos, pilhámos…

Conta o narrador que após a tomada de Goa os rios que envolviam a ilha ficaram rubros do sangue dos muçulmanos apanhados na orgia saqueadora, e que nem os crocodilos “conseguiram lidar com a fartura”. “Foi uma limpeza” escreveu Afonso de Albuquerque a Dom Manuel I.

A história de Portugal no Índico não foi uma coisa bonita de se ver.

E no entanto, ficamos perplexos com tanta bravura e crueldade.

O livro já vai na 6ª edição.

domingo, maio 07, 2017

A derrota do fascismo de pantufas

Venceu a União Europeia, que precisa urgentemente de ser reformada nas suas políticas. Os eleitores franceses, e anteriormente os holandeses, não quiseram entrar em aventureirismos que os poderiam levar a um empobrecimento. Interiorizaram que a cisão com o projecto europeu, o fim do Euro e da União Europeia, teria um impacto muito negativo nas suas carteiras, com as desvalorizações das moedas nacionais que então criariam e, consequentemente, das suas poupanças. As derrotas de Le Pen, em França, e de Geert Wilders, na Holanda, devem-se às suas posições contra o projecto europeu e contra a União Europeia.

Os problemas que se colocam hoje ao mundo transcendem a capacidade dos velhos Estados-nação para os resolverem. São problemas transnacionais. São precisas organizações de alcance mais vasto (espaços políticos transnacionais), e reticulares (cidades globais funcionando em rede).

Mas o fascismo de pantufas continuará a andar por aí, pronto a ocupar o poder em França, se Macron e a União Europeia não estiverem à altura dos desafios (as migrações ilegais massivas, os refugiados, o terrorismo, os problemas ambientais e as alterações climáticas, e as ameaças geopolíticas que sopram de várias direcções).

segunda-feira, abril 17, 2017

The specifics


Now few biochemists and molecular biologists doubt that life can arise naturally from nonlife , even though the specifics are yet to be discovered.


Lawrence Kraus, A Universe from Nothing: Why There Is Something Rather Than Nothing, Simon & Schuster, 2012


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Defende-se que pode haver criação sem criador e que a vida surgiu da não vida, mas o problema são os detalhes - "the specifics". Sempre os detalhes.

Mas afinal, o que se esconde nos detalhes? Deus, o Diabo, o Nada?

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Edição portuguesa da Gradiva.

segunda-feira, abril 10, 2017

Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017)

Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017)

Hoje partiu uma das nossas melhores.
Enriqueceu-nos.

Por ela chegou até nós a Cultura Clássica, os mundos gregos e romanos. Muito antes de sabermos quem ela era, já tínhamos descuidadamente lido algumas das suas traduções entre as quais A República, de Platão, da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois foi uma curiosa descoberta verificarmos, afinal, que o seu nome estava em muitas obras traduzidas e lidas.

É gratidão o que sentimos e lamentamos a sua partida. Foi (É) para nós a Tradutora e a Anfitriã desses mundos longevos.

Fica aqui a nossa humilde homenagem.

domingo, abril 02, 2017

Um mundo novo é inevitável

Todos sabemos que a lagarta se metamorfoseará numa borboleta. Mas a lagarta saberá isso? Esta é a pergunta que temos de fazer aos profetas da catástrofe. São como as lagartas no casulo da mundivisão da sua existência de lagarta, inconscientes da sua metamorfose iminente. São incapazes de distinguir entre a decadência e a mudança para uma coisa diferente. Veem a destruição do mundo e dos seus valores, embora não seja o mundo que está a perecer, mas a imagem que têm do mundo.

Ulrich Beck, A Metamorfose do Mundo, Edições 70, 2017, pág. 30

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Um novo mundo é possível?! Que interessa isso agora? Agora é tarde. Os portões saíram dos seus gonzos. Um novo mundo é já inevitável! Quer queiramos quer não. A metamorfose do mundo está em curso. O que daí virá? Um admirável mundo novo? Talvez. Um mundo distópico? Não sabemos. Não será por certo um mundo em que os amanhãs cantam. Por certo será um mundo que não esperamos e do qual nem suspeitamos. Um mundo distante, muito distante desse mundo desejável pelos que proclamavam a possibilidade de um novo mundo, diferente do que nos impunha a globalização capitalista.

Ulrich Beck morreu. Só o soube, para grande surpresa minha, quando adquiri este seu novo livro póstumo: A Metamorfose do Mundo. Julgava-o vivo. Outro mestre que partiu, já há dois anos. Vive no entanto na sua obra e no pensamento que dela ecoa.

Até sempre Ulrich Beck.

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Novas costas delinear-se-ão. Ilhas e porções de terra hoje emersas ficarão submersas, assim como as áreas baixas das cidades e as baixas das cidades. Populações procurarão refúgio noutros lugares, espécies perecerão com o desaparecimento dos seus habitats e tempestades cada vez mais violentas varrerão os céus, a terra e os mares. Vinhedos, oliveiras e palmeiras surgirão noutros horizontes, mais para o norte e mais para o sul e certos insectos transmissores de doenças alastrarão também, assim como os desertos que já cobrem um terço da superfície da área continental planetária. Oceanos nunca antes navegados por veleiros serão atravessados por esses barcos de lés a lés. Os corais branqueiam-se e morrem, como já se anuncia, e muitas espécies perecerão numa já anunciada sexta extinção em curso. Não obstante não é do Apocalipse segundo São João de que falamos. É de outra coisa. A metamorfose do mundo é também a nossa metamorfose, assim como a da nossa visão do mundo. Virá um Homem novo. Um cyborg (já há quem por aí ande, merecidamente feliz, com um novo coração artificial). Também isto é já parte do mundo novo.

domingo, março 12, 2017

Ninguém nasce revolucionário

El hombre nos es totalmente dueño de su destino. El hombre también es hijo de las circunstancias, de las dificultades, de la lucha. Los problemas lo van labrando como un torno labra un pedazo de metal. El hombre no nace revolucionário, me atrevo a decir.
Fidel Castro


in Ignacio Ramonet, Biografia a dos Voces, Penguin Random House Grupo Editorial, 2015

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As primeiras palavras da longa entrevista de Fidel Castro a Ignacio Ramonet parecem o início de um poema épico: "O homem não é totalmente dono do seu destino".  Fidel adopta a terminologia do filósofo Ortega Y Gasset: o homem torna-se revolucionário, mas apenas se assim o forjarem o destino e as circunstâncias. 

Ninguém nasce revolucionário.

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