quinta-feira, junho 08, 2017

"A Inglaterra está acabada"

Aqui.

Ironias da História

No século XVI os escravos negros eram desembarcados em Lisboa em condições desumanas. Depois de serem capturados nas selvas e traficados nos portos de África eram forçados a embarcar como animais selvagens. Chegavam “em condições terríveis «empilhados nos porões dos navios, vinte e cinco, trinta ou quarenta de cada vez, mal alimentados, acorrentados uns em cima dos outros». Modas luxuosas e loucas contaminavam a cidade: tornou-se comum ter um escravo negro em casa.” (Crowley, 2016, pág. 318). Nessa Era em que se dava início ao que viria a chamar-se comércio triangular, através do Atlântico, – armas por escravos e escravos por algodão, café ou açúcar – o Ocidente arrancava os negros do continente africano, com a colaboração de outros africanos, e arrastava-os para Europa e depois, mais tarde, directamente para as fazendas e plantações das Américas.

Hoje, volvidos cerca de 500 anos, ironia da História, são os negros que partem, expelidos pelo continente infernal, enfrentando todos os perigos da travessia dos desertos africanos e do Mar Mediterrâneo, também em condições desumanas, colocando em risco a própria vida e entregam-se nos braços do Ocidente, de livre vontade, prontos a abraçar qualquer trabalho mal pago, qualquer trabalho escravo, qualquer trabalho nas quintas da Europa, algumas exploradas por gente mafiosa e sem escrúpulos, quase como noutros tempos.

***

Fogem de outras guerras. O inferno é algures em África e o Diabo só pode morar ali. Só assim se explica a debandada dos africanos. Não são escravos, dirão, são homens. Contudo, o que dizer sobre o que se passa na Líbia em relação aos que chegam das terras a sul do Sara?

Vede Aqui!

Se não é escravatura, então o que é?

***
Referência

Crowley, Roger; Conquistadores, Como Portugal Criou o Primeiro Império Global, Editorial Presença, 2016, pág. 318.

quarta-feira, junho 07, 2017

Sobre bombas e cacetadas

Thomas Friedman
Thomas Friedman deve ser mesmo um bom opinion maker, pois muitos são os seus artigos de opinião no New York Times que ficam na memória ou na retina de quem os lê, e após uma só leitura. Um artigo que retive foi o das "nossas três bombas". De acordo com Thomas Friedman são três as bombas que a qualquer momento podem deflagrar e desestabilizar a nossa realidade: a bomba nuclear, a bomba da dívida e a bomba climática. O artigo é este: “Our Three Bombs”, New York Times, 7/10/2009

Desde que li o artigo em 2009, as bombas de Friedman nunca mais me saíram da cabeça. Inspirado por ele, reformulo aqui a lista de "bombas" que nos ameaçam, e são mais do que três, embora algumas, em parte, se possam sobrepor .

 Em primeiro lugar as três bombas de Friedman:

1.     A bomba da ameaça nuclear (a Guerra Fria terminou mas as bombas ainda existem assim como a ameaça da proliferação nuclear).
2.    A bomba da dívida (uma bomba com repercussões económicas e financeiras, também ela devastadora de vidas).
3.     A bomba climática (desencadeada pelo incremento do efeito de estufa com todas as suas consequências).

Às bombas de Friedman acrescento as seguintes (com algum risco de sobreposição parcial):

4.       A bomba demográfica (o crescimento demográfico no mundo é explosivo, acompanhado por uma crescente produção, consumo e pressão sobre os recursos naturais que são limitados face às ilimitadas necessidades humanas);
5.       A bomba ambiental (estamos a atravessar a 6ª extinção em massa, e não foi causada por um meteorito que colidiu com a Terra, a não ser que chamemos ao ser humano um “meteorito”. Bem vindos ao Antropoceno.);
6.       E a bomba terrorista (eles andam aí).

As consequências destas bombas podem ser devastadoras. Aliás já estão a sê-lo para muitos.

A estas bombas acrescentaria a bomba mais ameaçadora de todas: aquela que ninguém espera e que por isso não pode ser nomeada por ser uma bomba desconhecida. Não tenhamos a ilusão de que somos conhecedores de todas as ameaças que pairam sobre as nossas cabeças. A realidade cósmica pode surpreender-nos com uma verdade inesperada e, dessa forma, ameaçar a nossa existência. Como disse George Steiner uma vez e que já aqui foi citado:

Tenho uma certa imagem mental da verdade emboscada ao virar da esquina, à espera de que o homem se aproxime – e a preparar-se para lhe dar uma cacetada na cabeça.

George Steiner, Nostalgia do Absoluto, Relógio D’Água, 2003. Pág. 80 e 81

Entretanto, carpe diem.

Baixem lá essa bosta, pá!


Quereis um desígnio? Baixem-na! Baixem a dívida pública! Libertem as futuras gerações desse fardo. A dívida pública excessiva será uma amarra que não as deixará navegar.

É certo que cresceu com a crise económica após 2009, pela integração de dívida privada, do crédito mal-parado e dos bancos resgatados pelos contribuintes. Grandes (alguns na verdade eram pequenos e foram tratados como grandes) demais para falirem.

Mas não nos deixemos iludir pelos que se ufanam de tão bons tempos que vivemos (dizem eles), do reduzido défice (o menor de sempre, dizem), da redução do desemprego (é bom ouvir) e do incipiente crescimento económico que o país manifesta agora, em grande parte, devido ao turismo e às actividades no seu entorno. 

Gostaria de ouvir os políticos, lá do alto dos seus palanques, perorarem sobre a dívida pública com o mesmo entusiasmo com que discursam acerca da redução do défice e do crescimento económico. Mas não é lá muito conveniente, pois não?!

Enquanto uma dívida pública desta magnitude perdurar não estaremos seguros, nem nós, nem os nossos filhos, nem os nosso netos. Eles é que vão pagar. Teremos então gerações de escravos. 

Passos tardam na relva

Passos tardam na relva
Entre o luar e o luar,
Tudo é eflúvio e selva.
Sente-se alguém passar.

Passa, pisando leve
O chão que o luar desmente,
Num pálido hausto leve
De pisar levemente.

É elfo, é gnomo, é fada
A forma que ninguém vê?
Lembro. não houve nada.
Sinto, e a saudade crê.


                             Fernando Pessoa (5-9-1933)


sábado, junho 03, 2017

A nova pimenta de Lisboa

Lisboa está a passar novamente por um momento de prosperidade e o turismo é a sua nova pimenta. Houve outros tempos assim, em que uma Lisboa cosmopolita fervilhava de gente vinda de todos os cantos, uns atraídos pelas riquezas da Índia e pelas novas descobertas do mundo, outros, forçados, vindos em levas de escravos, outros ainda para trabalhar na construção das naus e dos novos edifícios emblemáticos do período das Descobertas, muitos dos quais ainda resistem para deleite de turistas e Madonnas. Lisboa então maravilhava e prosperava. Mas infelizmente não há bem que nunca acabe. No caso actual os efeitos secundários deste “bem” já se começam a sentir. Lisboa está cara. Lisboa não é para lisboetas. O seu centro transformou-se num parque temático e os turistas, hoje, são mais que pombos. Os lisboetas mais cobiçosos e oportunistas e com alguma capacidade financeira, ou de improvisação, apressam-se em transformar os seus apartamentos, pequenos ou grandes, novos ou velhos, em unidades de alojamento para turistas, que o tempo é de vacas gordas. É fartar vilanagem.

A incursão nocturna na Feira do Livro de Lisboa e os escritores judeus

Ontem realizámos a nossa primeira incursão nocturna na Feira do Livro de Lisboa. Missão: localizar rapidamente e sem ajuda de qualquer mapa ou GPS o pavilhão da Bertrand e adquirir por uns módicos 12,25 € o famoso livro do Prémio Nobel da Economia, Daniel Kahneman, Pensar Depressa e Devagar (Temas e Debates/Círculo de Leitores), anunciado como o livro do dia da editora e por isso mais barato. Soubemo-lo pela consulta prévia do portal da Feira, na Internet (http://feiradolivrodelisboa.pt). Subimos impelidos pela fresca brisa nocturna a avenida da esquerda por entre os pavilhões das editoras, levados pelo instinto e pela memória de outras feiras, e fomos certeiros. A Bertrand estava no sítio habitual com vários pavilhões e um amplo balcão corrido, exclusivo para pagamentos, com várias caixas. Missão cumprida, deambulámos depois por entre os pavilhões das editoras até ao cume da Feira onde estacionava uma convidativa carripana de farturas (na verdade estas carripanas encontram-se estacionadas em vários cantos estratégicos, no sopé e no cume da Feira).

Em casa, abro o livro, dou um relance nas badanas, na capa e no verso: Daniel Kahneman é judeu - outro judeu. Salto a introdução (ao diabo com as introduções, deixo-as quase sempre para o fim) e começo a ler o primeiro capítulo. Descubro que o livro tem duas personagens – o Sistema 1 e o Sistema 2. Torço o nariz. Que raio de nomes. Mas rapidamente se tornou claro que poderá ser uma leitura interessante, ou então será mais um livro que irá repousar na anti-biblioteca. O Cisne Negro do Taleb, já lá está. Foi lido até pouco mais de metade com algum interesse, depois com alguma resistência e depois com alguma penosidade: logo naquelas páginas iniciais se percebe o leimotiv, o motto - “shit happens” – que é apresentado em looping, com inúmeros exemplos, quase até à exaustão. Destino: anti-biblioteca. A leitura será retomada noutro dia, talvez para as calendas. Espero que não ocorra o mesmo com o livro do Kahneman.

Afinal os judeus, por razões históricas, religiosas e civilizacionais, parece que se especializaram na lapidação de diamantes, na banca e na escrita – são um dos povos do Livro -, e na verdade escrevem obras cativantes como diamantes. Quase sem me dar conta dou com a casa repleta de livros de judeus, estando inclusivamente a ler em simultâneo várias obras deles: Homo Deus, do Yuval Harary (HarperCollins Publishers),  George Steiner em The New Yorker (o da Gradiva), e agora este do Kahneman.

Nas prateleiras, repousam livros de Hannah Arendt, Elias Canetti, Zygmunt Bauman, Eric Hobsbawn, Stefan Zweig, George Steiner, Tony Judt e se calhar outros com os quais ainda nem me deparei, também escritos por gente da diáspora. Outros li, como Primo Levi, que não queria deixar de referir aqui. A todos eles tiro o meu chapéu. Grande gente, grande povo e grande civilização que culturalmente nos enriquece a todos. Como foi possível termos expulsado outrora esta gente?

Bem hajam! (Ops, não é este o título da obra de outro judeu que também li recentemente?).

segunda-feira, maio 22, 2017

O Alien: Covenant e a Guerra dos Tronos

No Alien: Covenant decidiram os argumentistas, como agora é moda, aproveitar e misturar cenas similares a outras histórias que fizeram história: nele encontramos a indomável criatura que escapa ao seu criador, virando-se contra ele, coisa que já vem do tempo do Dr. Frankenstein e provavelmente antes disso, e que se repete vezes e vezes sem fim, do Robocop ao Terminator, antes e depois. Temos também um robot psicopata, qual Hannibal Lecter, que esconde as suas intenções assassinas sob uma face inexpressiva, quiçá até bondosa e uma falsa atitude protectora, até se revelar na sua extrema agressão. E uma cena no banho, à Psico, do velho Hitchcock, mas agora com um casal bem amparado em vez de uma menina desamparada e de grito estridente.

Argúcia do realizador: receitas antigas para novos proventos.

***

Já na Guerra dos Tronos a misturada é também evidente: velhas epopeias, ilíadas e odisseias, histórias medievais, as histórias fantásticas de Tolkien, com dragões e anões, mas agora condimentadas com erotismo e soft porn (receita das Sombras de Grey?), relações incestuosas, sadismo, zombies e grosserias. Enfim, um melting pot que vende.

domingo, maio 21, 2017

A realidade sofre

«When examining the history of any human network, it is therefore advisable to stop from time to time and look at things from the perspective of some real entity. How do you know if an entity is real? Very simple – just ask yourself, ‘Can it suffer?’ When people burn down the temple of Zeus, Zeus doesn’t suffer. When the euro loses its value, the euro doesn’t suffer. When a bank goes bankrupt, the bank doesn’t suffer. When a country suffers a defeat in war, the country doesn’t really suffer. It’s just a metaphor. In contrast, when a soldier is wounded in battle, he really does suffer. When a famished peasant has nothing to eat, she suffers. When a cow is separated from her newborn calf, she suffers. This is reality.»
Yuval Noah Harari


Yuval Noah Harari, Homo Deus, A Brief History of Tomorrow, HarperCollins Publishers, 2017

***

Yuval Harari, testa a realidade pelo sofrimento. Quer saber se uma entidade é real? É, se apresentar um potencial de sofrimento. Caso contrário estamos a falar de abstracções, metáforas, realidades intersubjectivas, porém, não da realidade objectiva. Essa sofre. É um pensamento com similitudes ao pensamento cartesiano. O “penso, logo existo” de Descartes é substituído pelo “sofro, logo existo”. No entanto Harari circunscreve esta ideia à história das redes de relações humanas - the history of any human network. Não aplicou o método de Descartes – a dúvida em relação à fiabilidade dos sentidos na leitura de toda realidade. Descartes viu-se então só com o seu pensamento e, como não podia duvidar que estava a pensar, deduziu que existia porque estava a pensar.

A realidade para Yuval Harari não é um pensamento, é um sentir. O sentimento vem antes do pensamento, e vem depois. Ou vem sem que exista pensamento algum.

Porém, cogitatio est. O pensamento existe. (Ortega y Gasset)

Etiquetas