quarta-feira, junho 14, 2017

O "charuto" vertical











Hoje as câmaras do mundo estiveram focadas num prédio londrino de 24 andares que ardeu por completo, como um charuto vertical.

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O urbanismo associado a concepções de alojamento massivo de população desfavorecida em altos edifícios residenciais, há muito que deu mostras de ser um urbanismo falhado que não se adequa à vida de uma cidade que se quer relacional. Os mais pobres são alojados e arrumados em pombais humanos, onde os riscos se acumulam com o passar do tempo – e às vezes nem é preciso muito tempo – até redundarem em catástrofes. No Reino Unido já era clássico o caso do colapso de Ronan Point, Caning Town, no Borough de Newham em Londres, em 1968, causado por uma explosão num fogão a gás (tinham passado apenas dois meses após a chegada dos primeiros moradores). A tragédia de hoje ultrapassa, de longe, a do colapso de Ronan Point. 

terça-feira, junho 13, 2017

That 2,000 Yard Stare

Tom Lea, That 2,000 Yard Stare, 1944.

Daqui.

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Adeus gloriosa guerra
Jamais gloriosa

Vitoriosa guerra
Jamais vitoriosa

A senda que à guerra conduz

À derrota conduz

(A guerra é sempre uma derrota)

sábado, junho 10, 2017

Da literatura e da arte que perverte, degrada e brutaliza

«Se é verdade que a literatura e a arte de qualidade podem educar a sensibilidade, engrandecer as nossas percepções, refinar o nosso discernimento moral, pelo mesmo raciocínio poderão também perverter, degradar e brutalizar a nossa imaginação e os nossos impulsos miméticos.»

George Steiner, “Homem Gato” in George Steiner em The New Yorker, Gradiva, 2010, pág. 265.

George Steiner

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As palavras são importantes, para o bem e para o mal. A literatura e a arte também podem ser uma droga potente. Assim se explicam alguns dos seus efeitos nefastos sobre a nossa “imaginação e os nossos impulsos miméticos”. A citação de George Steiner enquadra-se num breve texto que escreveu sobre a obra de um escritor considerado maldito: Céline. Mas quanta literatura e arte (e a literatura é uma das artes) não existem por aí com esse efeito, embora se possa questionar a sua qualidade e até a sua categoria enquanto obra artística. (É isto literatura?) Livros que incendeiam as almas e o mundo, e que sem eles o mundo decerto seria um lugar bem melhor, sem ideologias e religiões incendiárias, e, consequentemente, sem tanto sofrimento. Mas para “educar a sensibilidade” e “engrandecer as nossas percepções” há um preço a pagar.

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Também poderíamos dizer em nota de rodapé que não existem religiões nem ideologias incendiárias, o que existem são incendiários inspirados por religiões e ideologias.

sexta-feira, junho 09, 2017

Da lei inelutável da história

«Permanece uma lei inelutável da história não dar aos contemporâneos a possibilidade de reconhecer, logo desde os primeiros alvores, os grandes movimentos que marcam o período em que vivem.»  

    Stefan Zweig, O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, Assírio & Alvim, 2005, pág. 392

“E também não gosto…” Nietzsche não era anti-semita e por certo não gostaria de nazis

«Mas não gosto de todos esses pequenos percevejos, cuja ambição insaciável é a de libertar o cheiro infinito, até o infinito acabar por cheirar a percevejos; não gosto de túmulos redecorados que imitam a vida; não gosto dos homens cansados e gastos que se embrulham em sabedoria e têm uma visão «objectiva»; não gosto de agitadores que se vestem de heróis e disfarçam a velha cabeça de alho chocho com um boné mágico de ideias; não gosto de artistas ambiciosos que aspiram representar o ascético e o sacerdote e que, no fundo não passam de palhaços trágicos; e também não gosto desses especuladores mais recentes no idealismo, os anti-semitas que, a rolar os olhos num estilo cristão-ariano-filisteu, procuram despertar todos os elementos bovinos do povo através de um abuso exasperante dos meios mais vis de agitação e atitudes morais (que todo o tipo de fraude intelectual alcança algum grau de sucesso na Alemanha de hoje está relacionado com a estultificação inegável e já tangível da mente alemã, cuja causa procuro numa dieta extremamente exclusiva de jornais, políticas, cerveja e música wagneriana, incluindo o que esta dieta pressupõe: em primeiro lugar a constrição e vaidade características da nação, o princípio forte mais limitado de «Deutschland, Deutschland über alles», bem como a paralysis agitans das ideias modernas»).»

Friedrich Nietzsche, A Genealogia da Moral, Publicações Europa-América, 2002, pág. 134 (livro de bolso) (o destaque a negrito é nosso)

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Que eram eles, esses nazis, senão “pequenos percevejos” que empestavam o mundo, querendo que o mundo cheirasse como eles. Não foi a sua ideologia um “túmulo redecorado de vida”? Não eram eles “agitadores vestidos de heróis” nas suas fardas e botas cardadas? Palhaços trágicos! Anti-semitas que despertaram os “elementos bovinos” do povo alemão, “através do abuso exasperante dos meios mais vis de agitação e atitudes morais”. Eis os homenzinhos das SS, nas suas primeiras “acções de combate”, quando saltavam dos seus camiõezinhos ao som de apitos e se punham a dar cacetadas nos sociais-democratas, como nos narra Stefan Zweig:

«Certo dia, quatro camiões chegaram de repente a grande velocidade a uma localidade fronteiriça onde se estava a realizar um comício pacífico dos social-democratas; cada camião vinha apinhado de jovens nacional-socialistas empunhando cacetes de borracha, e tal como me tinha sido dado ver, na Praça de São Marcos em Veneza, também estes aqui surpreenderam, pela sua rapidez, todos os presentes que foram apanhados desprevenidos. Tratou-se exactamente do mesmo método copiado dos fascistas, só que aprendido com férrea precisão militar e sistematicamente organizado até ao último pormenor, à maneira alemã. A um assobio, os homens das SS saltaram dos veículos à velocidade de um raio, bateram com os seus cacetes de borracha em quem lhes aparecia pela frente e, antes que a polícia pudesse intervir, ou os trabalhadores pudessem juntar-se, já eles tinham voltado a saltar para dentro dos camiões que partiram à desfilada.»

    Stefan Zweig, O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, Assírio & Alvim, 2005, pág. 394


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Não, Nietzsche não era anti-semita, e por certo abominaria nazis. Parece tê-los cheirado com muitos anos de antecedência, muito antes dos contemporâneos daqueles se terem apercebido do que aí vinha.

quinta-feira, junho 08, 2017

"A Inglaterra está acabada"

Aqui.

Ironias da História

No século XVI os escravos negros eram desembarcados em Lisboa em condições desumanas. Depois de serem capturados nas selvas e traficados nos portos de África eram forçados a embarcar como animais selvagens. Chegavam “em condições terríveis «empilhados nos porões dos navios, vinte e cinco, trinta ou quarenta de cada vez, mal alimentados, acorrentados uns em cima dos outros». Modas luxuosas e loucas contaminavam a cidade: tornou-se comum ter um escravo negro em casa.” (Crowley, 2016, pág. 318). Nessa Era em que se dava início ao que viria a chamar-se comércio triangular, através do Atlântico, – armas por escravos e escravos por algodão, café ou açúcar – o Ocidente arrancava os negros do continente africano, com a colaboração de outros africanos, e arrastava-os para Europa e depois, mais tarde, directamente para as fazendas e plantações das Américas.

Hoje, volvidos cerca de 500 anos, ironia da História, são os negros que partem, expelidos pelo continente infernal, enfrentando todos os perigos da travessia dos desertos africanos e do Mar Mediterrâneo, também em condições desumanas, colocando em risco a própria vida e entregam-se nos braços do Ocidente, de livre vontade, prontos a abraçar qualquer trabalho mal pago, qualquer trabalho escravo, qualquer trabalho nas quintas da Europa, algumas exploradas por gente mafiosa e sem escrúpulos, quase como noutros tempos.

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Fogem de outras guerras. O inferno é algures em África e o Diabo só pode morar ali. Só assim se explica a debandada dos africanos. Não são escravos, dirão, são homens. Contudo, o que dizer sobre o que se passa na Líbia em relação aos que chegam das terras a sul do Sara?

Vede Aqui!

Se não é escravatura, então o que é?

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Referência

Crowley, Roger; Conquistadores, Como Portugal Criou o Primeiro Império Global, Editorial Presença, 2016, pág. 318.

quarta-feira, junho 07, 2017

Sobre bombas e cacetadas

Thomas Friedman
Thomas Friedman deve ser mesmo um bom opinion maker, pois muitos são os seus artigos de opinião no New York Times que ficam na memória ou na retina de quem os lê, e após uma só leitura. Um artigo que retive foi o das "nossas três bombas". De acordo com Thomas Friedman são três as bombas que a qualquer momento podem deflagrar e desestabilizar a nossa realidade: a bomba nuclear, a bomba da dívida e a bomba climática. O artigo é este: “Our Three Bombs”, New York Times, 7/10/2009

Desde que li o artigo em 2009, as bombas de Friedman nunca mais me saíram da cabeça. Inspirado por ele, reformulo aqui a lista de "bombas" que nos ameaçam, e são mais do que três, embora algumas, em parte, se possam sobrepor .

 Em primeiro lugar as três bombas de Friedman:

1.     A bomba da ameaça nuclear (a Guerra Fria terminou mas as bombas ainda existem assim como a ameaça da proliferação nuclear).
2.    A bomba da dívida (uma bomba com repercussões económicas e financeiras, também ela devastadora de vidas).
3.     A bomba climática (desencadeada pelo incremento do efeito de estufa com todas as suas consequências).

Às bombas de Friedman acrescento as seguintes (com algum risco de sobreposição parcial):

4.       A bomba demográfica (o crescimento demográfico no mundo é explosivo, acompanhado por uma crescente produção, consumo e pressão sobre os recursos naturais que são limitados face às ilimitadas necessidades humanas);
5.       A bomba ambiental (estamos a atravessar a 6ª extinção em massa, e não foi causada por um meteorito que colidiu com a Terra, a não ser que chamemos ao ser humano um “meteorito”. Bem vindos ao Antropoceno.);
6.       E a bomba terrorista (eles andam aí).

As consequências destas bombas podem ser devastadoras. Aliás já estão a sê-lo para muitos.

A estas bombas acrescentaria a bomba mais ameaçadora de todas: aquela que ninguém espera e que por isso não pode ser nomeada por ser uma bomba desconhecida. Não tenhamos a ilusão de que somos conhecedores de todas as ameaças que pairam sobre as nossas cabeças. A realidade cósmica pode surpreender-nos com uma verdade inesperada e, dessa forma, ameaçar a nossa existência. Como disse George Steiner uma vez e que já aqui foi citado:

Tenho uma certa imagem mental da verdade emboscada ao virar da esquina, à espera de que o homem se aproxime – e a preparar-se para lhe dar uma cacetada na cabeça.

George Steiner, Nostalgia do Absoluto, Relógio D’Água, 2003. Pág. 80 e 81

Entretanto, carpe diem.

Baixem lá essa bosta, pá!


Quereis um desígnio? Baixem-na! Baixem a dívida pública! Libertem as futuras gerações desse fardo. A dívida pública excessiva será uma amarra que não as deixará navegar.

É certo que cresceu com a crise económica após 2009, pela integração de dívida privada, do crédito mal-parado e dos bancos resgatados pelos contribuintes. Grandes (alguns na verdade eram pequenos e foram tratados como grandes) demais para falirem.

Mas não nos deixemos iludir pelos que se ufanam de tão bons tempos que vivemos (dizem eles), do reduzido défice (o menor de sempre, dizem), da redução do desemprego (é bom ouvir) e do incipiente crescimento económico que o país manifesta agora, em grande parte, devido ao turismo e às actividades no seu entorno. 

Gostaria de ouvir os políticos, lá do alto dos seus palanques, perorarem sobre a dívida pública com o mesmo entusiasmo com que discursam acerca da redução do défice e do crescimento económico. Mas não é lá muito conveniente, pois não?!

Enquanto uma dívida pública desta magnitude perdurar não estaremos seguros, nem nós, nem os nossos filhos, nem os nosso netos. Eles é que vão pagar. Teremos então gerações de escravos. 

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