quinta-feira, julho 23, 2020

Medo e crueldade












Em nenhuma parte da Europa o Alemão me aparecera tão nu, tão descoberto, como na Polónia. No decorrer da minha longa experiência de guerra, tinha-me convencido de que o Alemão não tem medo do homem forte, do homem armado que o enfrenta com coragem e que lhe faz frente. O Alemão tem medo dos desarmados, dos débeis, dos doentes. O tema do «medo», da crueldade alemã como efeito do medo, tornara-se o tema fundamental de toda a minha experiência. Para quem olhar bem, com inteligência moderna e cristã, este «medo» inspira piedade e horror, e nunca me tinha suscitado tanta piedade e tanto horror como na Polónia, onde me aparecia em toda a sua complexidade o elemento mórbido, feminino, da sua natureza. O que move o Alemão para a crueldade, para os actos mais fria, mais metódica, mais cientificamente cruéis é o medo. O medo dos oprimidos, dos desarmados, dos débeis, dos doentes, o medo dos velhos, das mulheres, das crianças, o medo dos judeus.

Curzio  Malaparte (1944), Kaputt, Publicações Europa-América, 1979, pág. 88.


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O desconhecimento e o desconhecido escondem-se sempre por trás do medo. O medo do outro, esse desconhecido, pode conduzir, em situação extrema, à agressão, quando pressentimos no outro uma potencial ameaça, um risco, um perigo. Colocamo-nos em guarda ante o desconhecido. O outro é um abismo.

Os Alemães pouco participaram das grandes navegações e dos encontros entre povos e civilizações, iniciadas no século XV. Só quanto os europeus partilharam a África, no final do século XIX, lhes coube a Togolândia, o Camarões, a África Oriental (actual Tanzânia) e o Sudoeste Africano (actual Namíbia). Neste último território ensaiaram o extermínio de povos autóctones e o funcionamento de campos de concentração*, “solução” que viriam mais tarde a adoptar largamente na Europa, durante a IIª Guerra Mundial, para fins de extermínio, não só de judeus, mas principalmente de judeus.
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(*) Sobre as atrocidades dos Alemães no Sudoeste Africano, ver Niall Ferguson, Civilização: o Ocidente e os Outros, Civilização Editora, 2012, pp. 205-213.

quarta-feira, julho 22, 2020

O brasileiro

O brasileiro é um feriado.
Nelson Rodrigues (1912-1980)*

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*citado por: 

Oscar Mascarenhas, O Grande Livro dos Pensamentos & das Citações, Marcador, 2015.

segunda-feira, julho 20, 2020

Não, não é Horácio, é Macaulay


XXVII

Then out spake brave Horatius,
The Captain of the Gate:
"To every man upon this earth
Death cometh soon or late.
And how can man die better
Than facing fearful odds,
For the ashes of his fathers,
And the temples of his gods

 Thomas Babington Macaulay, Lays of Ancient Rome (1842)

Uma tradução:

Então falou o bravo Horácio,
O Capitão do Portão:
“A todo o homem acima desta terra
A morte virá mais cedo ou mais tarde.
E que melhor morte pode um homem desejar
Do que enfrentando riscos tremendos,
Em nome das cinzas dos seus antepassados
E dos templos dos seus deuses

Thomas Macaulay, Cantos de Roma Antiga (1842)

domingo, julho 19, 2020

Deserta como o fim do mundo

















Alentejo. Imediações de Santa Margarida do Sado.

Ouvia-se um sibilar distante. Um som que se confundia com o ligeiro sopro do vento nas copas das árvores, mas, apurando mais o ouvido, percebia-se que eram veículos circulando ao longe a alta velocidade. Os automóveis sibilavam na auto-estrada. Naquela estrada porém, nem um só passou enquanto estivemos parados para abastecer o estômago.  36º C à sombra e uma estrada deserta.

Deserta como o fim do mundo.

quarta-feira, julho 15, 2020

Era uma vez na Europa


Boaventura de Sousa Santos (2020), A Cruel Pedagogia do Vírus, Edições Almedina.

óóóóó

Uma pandemia desta dimensão provoca justificadamente comoção mundial. Apesar de se justificar a dramatização, é bom ter sempre presente as sombras que a visibilidade vai criando. Por exemplo, os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria), há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os internados não podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível.

Boaventura de Sousa Santos (2020), A Cruel Pedagogia do Vírus

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Antes de mais diga-se que o livrinho de Boaventura de Sousa Santos é excelente, porque convida à reflexão. Mas não concordamos com tudo.

O facto de cairmos de paraquedas em solo europeu não nos torna automaticamente europeus. Estar na Europa não implica necessariamente ser da Europa ou ser europeu. Para contrariarmos Boaventura de Sousa Santos, quando refere que “Isto também é Europa – a Europa invisível.” diremos que não é Europa, é antes na Europa. Na fronteira sul da Europa, no caso. A constatação deste facto deverá aliviar as nossas consciências? Talvez não. A Europa encontra-se perante um desafio e Boaventura de Sousa Santos desafia-nos.

Digamos que entre os recém-chegados à nossa casa há os que fogem do pesadelo da guerra (os refugiados) e há os que perseguem com ambição um sonho europeu (os imigrantes económicos, muitos deles ilegais). E para tornar as coisas ainda mais complexas há ainda os que fogem dum pesadelo bélico e acalentam, ao mesmo tempo, o sonho europeu. Ora defende-se aqui que devem ser acolhidos todos os que fogem ao pesadelo da guerra, independentemente de acalentarem ou não o sonho europeu. Defende-se aqui, também, que a dívida moral dos europeus para com os outros povos do mundo, pelas malfeitorias que os europeus realizaram no passado, entre as quais se contam a exploração colonial e a escravatura, não é eterna, ao contrário do que muitos parecem defender, para justificarem a defesa de políticas migratórias de porta escancarada.

Não, não é Europa, é na Europa. E sim, é invisível, mas na Europa invisível, porque ninguém para lá vira o rosto*.
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(*) Temos vergonha em dizer que de lá toda a gente desvia o rosto porque nos vem à memória o gesto que os civis alemães esboçavam quando eram obrigados, pelas tropas aliadas no final da IIª Guerra Mundial, a caminhar entre as pilhas de cadáveres dos campos de concentração: desviavam o rosto.

terça-feira, julho 14, 2020

Entretanto, no Mar da China Meridional

Os porta-aviões USS Nimitz e USS Ronald Reagan e a respectiva escolta, num raro exercício no Mar da China Meridional 

Entretanto, no Mar da China Meridional, jogam-se jogos de guerra. A hiperpotência em declínio mostra os dentes à potência em ascensão. Uma manifestação de força para conter veleidades chinesas. Os E.U.A. não estão dispostos a tolerar a expansão chinesa no Mar da China Meridional, que em parte se baseia na construção de ilhas artificiais para depois reivindicar direitos soberanos sobre o mar envolvente. Há muito que a ilha da Formosa (Taiwan), localizada imediatamente a nordeste daquele mar, está na mira da China, e todos sabemos o que trava os chineses. Não ousarão esboçar um gesto de invasão enquanto se sentirem menos poderosos do que os E.U.A. também naquelas águas. Os E.U.A., entretanto, não se inibem de anunciar que consideram ilegal a maior parte das reivindicações marítimas chinesas.

A China é paciente.

segunda-feira, julho 13, 2020

O mundo de amanhã. Pobre América.


Carlos Gaspar (2020), O Mundo de Amanhã, Geopolítica Contemporânea, Fundação Francisco Manuel dos Santos.
óóóó

O livrinho de Carlos Gaspar, O Mundo de Amanhã, Geopolítica Contemporânea interessa aos que se preocupam com os rumos do mundo.

Nele se percebe que o futuro geopolítico já é o presente. Estados Unidos da América, hiperpotência em declínio, Rússia estagnada, a lutar por manter o estatuto de superpotência, e China em ascensão económica, militar, científica e tecnológica, são os actores de primeira grandeza nesse palco geopolítico do mundo, com a União Europeia (conjuntamente com o Reino Unido), em segundo plano.

Da conclusão do autor concluímos que o mundo de amanhã é incerto, balizado no entanto por algumas certezas que se prendem com os protagonistas geopolíticos, o jogo entre eles, e os possíveis papéis que irão desempenhar no teatro do mundo.

Nos primeiros parágrafos da conclusão concluímos que o futuro do mundo oscila entre uma utopia e uma distopia: “No mundo de amanhã, é possível que as pessoas vivam bem para lá dos cem anos…” e, no parágrafo seguinte, “No mundo de amanhã, é igualmente possível que o isolamento e o tédio condenem os mais velhos a uma escolha impossível entre a melancolia e o suicídio…” (Gaspar, 2020, págs. 97-98). É assim que começa, na conclusão, por traçar dois cenários possíveis e extremos, mas vai muito para além das questões demográficas e gerontológicas.

Talvez o rumo se encontre entre a utopia e a distopia, num equilíbrio instável. E, neste caso, é sempre bom saber de que lado se encontra o abismo.

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Muito se sublinhou, mas cá vai uma frase sublinhada e uma reflexão:

O “sonho chinês” realiza-se com as novas Rotas da Seda.

Carlos Gaspar (2020), op. cit., pág. 46

Ah, as grandezas do mundo e os sonhos de grandeza! Muitos querem ser grandes, projectando no futuro os gloriosos momentos do passado. Sonham os chineses então com futuras rotas da seda. Os russos sonham com paradas militares imperiais. Os portugueses, com projecções no mar, o mar, o mar. Sonhos de impérios pretéritos.

Os americanos ainda são grandes e não sonham. Têm pesadelos. Pesadelos chineses. Sentem a sua grandeza ameaçada. Sentem que perdem o pé. Só assim se explicam as proclamações de America first!, e, Make America great again! Nem que seja atropelando os demais, açambarcando meios e remédios, como se tem visto com o remdesivir. Pobre América.

domingo, julho 12, 2020

Azenhas do Mar em tempo de SARS-CoV-2























Envolta na bruma, depois do almoço domingueiro, em pleno Verão. Uma frescura. Cerca de 21ºC quando Lisboa arde com 32º C. Um refúgio contra o calor abrasador do Estio, a poucos quilómetros da capital.

É claro que no novo normal é impossível evitar o medo do vírus quando se sai à rua. Ele avista-se por vezes no olhar daqueles com quem nos cruzamos, o que é muito desagradável. No caminho, com cerca de dois metros de largura, que se avista no canto inferior direito da fotografia de baixo,  uma família  - pai, mãe e dois filhos - que vinha subindo, pouco antes de cruzar-se connosco, colocou as máscaras e apartou-se bem, não fossemos ter peçonha. O olhar receoso da filha adolescente por detrás da máscara cruzou-se com o meu. Reparei depois nesse olhar já aliviado mais adiante, ao retirar a máscara com todo o cuidado.

Diabo de novo normal.

Mas também se ouviram risos nas esplanadas, de gente jovem, ociosa e feliz.

segunda-feira, julho 06, 2020

For a Few Dollars More, de Ennio Morricone


Quero aqui também homenagear o maestro Ennio Morricone (1928-2020), cuja música me tem acompanhado desde tenra idade. Por vezes dava comigo a trauteá-la sem me lembrar bem da proveniência. Onde é que tinha ouvido aquilo? Música magnífica. Partiu hoje.

Curiosamente, faz quase um ano em que publiquei aqui uma música sua.

Magnífico.

Até sempre Ennio Morricone.

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