segunda-feira, outubro 29, 2012

As nomenklaturas

«The story of how political institutions developed cannot be told without understanding the complementary process of political decay. Human institutions are “sticky”; that is, they persist over time and are changed only with great difficulty. Institutions that are created to meet one set of conditions often survive even when those conditions change or disappear, and the failure to adapt appropriately entails political decay. This applies to modern liberal democracies encompassing the state, rule of law, and accountability as much as to older political systems. For there is no guarantee that any given democracy will continue to deliver what it promises to its citizens, and thus no guarantee that it will remain legitimate in their eyes.»

Francis Fukuyama, The origins of political order: from prehuman times to the French Revolution, Farrar, Straus and Giroux, 2011, p. 30.

«Still, let us not disarm, even in unsatisfactory times. Social injustice still needs to be denounced and fought. The world will not get better on its own. »

Eric Hobsbawm, Interesting times: a twentieth-century life, The Penguin Press, 2002, p. 489.

***

Vivemos tempos de decadência política. O cheiro a pólvora já começa a invadir o ar. Sabemos que as instituições humanas tendem para a inércia, em particular as políticas, com os seus acomodados, as suas nomenklaturas, os seus apaniguados, tentando manter a todo o custo o status quo e a manter-se a si mesmos - que o digam os velhos deputados que se sentavam nos cadeirões do politburo. Quando tudo aquilo ruiu o tecto caiu-lhes em cima, para sua surpresa. A nomenklatura tenta a todo o custo manter o status quo, nem que seja iludindo enquanto pode a realidade, tentando em última instância, mudar tudo para que tudo fique na mesma, como dizia o Lampedusa. Mas não nos deixemos iludir. Nada voltará a ser como dantes e iludida andará a nomenklatura se pensa que tudo retornará. Terá o seu choque de realidade. E embora as instituições políticas, criadas para dar resposta a um conjunto de condições que já não existem mais, teimem em resistir, acabarão por entrar em ruptura no limite da decadência política. Enquanto as nomenklaturas persistirem neste impasse de auto-preservação ante uma realidade na qual já não encaixam, adiam apenas mais um pouco a inevitabilidade e o curso da história e da mudança, que já se fareja.

A mudança, lembra-nos Fukuyama, ocorre, mas só com grande dificuldade e sofrimento. Assim, se as nomenklaturas tentam entravar o curso da história, não nos surpreendamos. Resistem à mudança. Por isso lembramos as últimas palavras da biografia de Hobsbawm: "o mundo não se tornará melhor por si só". É nestes momentos que se impõe a acção dos homens e das mulheres que querem mudar o mundo para melhor, porque ele, por si só não mudará.

***

Portugal é um país de nomenklaturas, não duvidemos. Há departamentos do Estado Central e nas Autarquias, por exemplo, onde ruminam famílias inteiras de instalados e de militantes partidários. É claro que assim é difícil mudar este estado de coisas. Todo o país está minado por este cancro e já cheio de metástases.

***

É muito curioso ouvir agora da boca daquele que proclamou o fim da história e teceu loas às democracias liberais, a afirmação de que afinal, qualquer democracia liberal moderna já não pode garantir, nas actuais condições, aquilo que prometia aos seus cidadãos – e o grosso dos portugueses que o diga - e portanto já não oferece garantias de que permanecerá legítima aos olhos dos seus cidadãos. Se assim é, têm agora a palavra os cidadãos. É preciso trazer novamente legitimidade à democracia, pois não nos serve uma democracia ilegítima, que ao invés de responder aos anseios dos cidadãos, os castiga tiranamente e os priva do futuro. Os nossos governantes prestam contas aos poderosos do mundo financeiro e aos mercados e o grosso dos cidadãos fica para segundo plano. É isto uma democracia legítima?

sábado, outubro 27, 2012

As nuvens e a música, em Tavira, nos desertos e no mundo

Tavira                                                                                                                       © AMCD

As nuvens não nos abandonam neste Outono, mas estava uma tarde tranquila nas margens do Gilão. Entre o grasnar das gaivotas soava um clarinete ao longe. Alguém tocava na velha ponte. A caixa do instrumento pousada no chão tinha poucas moedas. À passagem, deitei-lhe uma moeda. Sem a música, a nossa vida nesta “terra devastada” seria insuportável.

«Formam uma constelação interessante [os que nos conseguiram dizer alguma coisa inovadora ou definidora sobre o que é a música]: Agostinho, Rosseau, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Adorno. Uma escassez selecta. Poderá parecer-nos quase escandalosamente rara no que diz respeito a um fenómeno de uma realidade tão manifesta e universal como a música; a um fenómeno sem o qual, para inúmeros homens e mulheres, esta terra devastada e o nosso trânsito nela seriam provavelmente insuportáveis.»

George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida, Relógio D’Água, 1997, p. 83

Pois sou um desses inúmeros homens de que fala Steiner, que não podem passar neste mundo sem a música. E ele diz mais:

«Diz-nos a antropologia filosófica, nas pessoas de Vico e Rosseau, que a música antecedeu a fala. Os pássaros cantam, bem como possivelmente certos mamíferos marinhos (apesar de só podermos suspeitar, sem termos a certeza, de que as suas canções comunicam significados específicos). Os ventos, as dunas e as rochas podem cantar. Já os ouvi no Negev quando a noite começa a arrefecer.  Schopenhauer afirma que se o nosso universo acabasse, persistiria a música – uma conjectura inconcebível a um nível racional ou empírico.»

                                      George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida, Relógio D’Água, 1997, p. 84

Pois também estou com Schopenhauer: a música já cá estava e por cá ficará, mesmo quando o mundo acabar.

São famosas as canções ouvidas nos desertos. Também hoje, curiosamente, ao chegar a casa, abri um livro volumoso e tropecei por acaso num relato de um viajante, de nome Harry St. John Philby (1885-1960), que contava o que lhe sucedera ao subir uma duna no deserto Rub' al Khali:

«Quite suddenly the great amphitheater began to boom and drone with sound not unlike that of a siren or perhaps an aeroplane engine – quite a musical, rhythmic sound of astonishing depth. The conditions were ideal for the study of the sand concert, and the first item was sufficiently prolonged, perhaps four minutes, for me to take in every detail. The men working at the well started a rival and less musical concert of ribaldry directed at the Djinns (desert spirits) who were supposed to be responsible for the occurrence. »

Harry St John Philby, in Benedict Allen (edit), The Faber Book of Exploration, Faber and Faber, London, 2002, p. 369.

Paradoxalmente, os grandes desertos estão cheios de música e de espíritos, tal como o flamenco que soa nas guitarras espanholas, com o seu espírito voador, que surge sempre quando é tocado ou cantado, possuindo as dançarinas, arrebatando-as para a dança. Olé!

Tavira                                                                                                                           © AMCD

Uma nuvem gigante pairava sobre Tavira, ameaçadora. Passou tranquilamente. Como a tarde.

sábado, outubro 20, 2012

Os alemães estão a dar-nos dinheiro?!

Monte Gordo                                                                                                          © AMCD


Dia bom para quem gosta de ler jornais em esplanadas soalheiras. Abrimos o Expresso e começamos por ler as opiniões e a páginas tantas deparamos com a opinião do historiador Rui Ramos que refere a certa altura o seguinte:

Daí que só pareça haver uma esperança: que os alemães acabem por nos dar mais tempo e mais dinheiro. Vamos admitir que dão.” (Rui Ramos, “A democracia é o meu subsídio?” in Expresso, 20 de Outubro de 2012, pág. 33.”)

Cai um ponto de interrogação, logo seguido de um ponto de exclamação: dão?! Os alemães estão porventura a dar-nos dinheiro?! E vamos admitir, ainda por cima, a hipótese de que nos poderão dar mais?! Mas que bondosos são os alemães. Que altruístas! Muito obrigado!

Mas há alguém que nos esteja a dar dinheiro? Não leu Rui Ramos o que escreve Miguel Sousa Tavares (MST) na página 7 do dito jornal? Diz ele, ironizando:

Nós não: não queremos mais prazo, nem mais dinheiro, nem menos juros: estamos confortáveis a ver os alemães financiarem-se a 0% de juros para depois nos emprestarem a 5% - por isso é que a Alemanha não quer ouvir falar nas eurobonds ou em qualquer forma de mutualização da dívida. E estamos confortáveis a ver as nossas empresas, que quando conseguem, compram dinheiro a 10%...” (Miguel Sousa Tavares, “Rendição” in Expresso, 20 de Outubro de 2012, pág. 7.”) (os sublinhados são nossos).

Não leu Rui Ramos o cronista que escreve ao lado, o Daniel de Oliveira, que às tantas diz:

Sobra então a última rúbrica: os juros da dívida. Correspondem a 9% da despesa e a 4% do PIB.” (Daniel Oliveira, “A arte da fuga” in Expresso, 20 de Outubro de 2012, pág. 33.”)

É certo que Portugal tem pouco dinheiro (quase sempre foi assim, e quando o teve, as nossas elites rapidamente o desbarataram e escoaram para fora do país – o dinheiro da pimenta, do ouro do Brasil, da CEE, do crédito fiado pelo contribuinte, etc. – lembram-se?), mas, ninguém nos está a dar ou dará dinheiro (e incluo nisto o tempo, porque tempo é, também neste caso, dinheiro). Portugal está a comprar dinheiro e está por isso a pagar por ele. E o preço que está a pagar pelo dinheiro que compra é muito mais elevado do que o preço que os alemães pagam pelo mesmo dinheiro. Aliás, os alemães é que estão a receber dinheiro gratuitamente pois nada pagam por esse dinheiro (a taxa de juro, ou seja, o preço do dinheiro, no caso deles, como nos lembra MST, é 0%). A eles é que está a ser dado dinheiro. E já nem falamos de tempo. Tiveram décadas para pagar as indemnizações das guerras mundiais, e não sabemos se já as pagaram integralmente.

Ora é no facto de os portugueses pagarem um preço diferente e mais elevado do que os alemães, por cada euro que compram, que reside uma grande injustiça, inaceitável, que deve ser reparada. Os nossos governantes têm de partir imediatamente para a renegociação do preço da dívida, ou dito doutra forma, do preço do dinheiro que nos vendem.

Opinion makers como Rui Ramos e outros, que alimentam este discurso de que nos estão a dar tempo e dinheiro, ou que Portugal está a receber uma ajuda, acabam por espalhar uma ideia falsa entre o público. Exactamente a de que estamos a receber uma ajuda.

É que neste mundo neoliberal que o capitalismo acabou por criar, infelizmente acaba por ser mesmo verdade: não há almoços grátis.

Se não acreditam perguntem aos pais do criança do jardim de infância de Quarteira a quem foi negado o almoço na cantina, por falta de pagamento.

P.S. - Não há almoços grátis, excepto, parece, para os alemães. Porque será? Será que alguém lhes pagou o almoço? Adivinhe quem foi.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Ia dizer-vos que hoje esteve um magnífico dia de Outono no Algarve Oriental

© AMCD

Ia dizer-vos que hoje esteve um magnífico dia de Outono no Algarve Oriental, mas não.

Hoje morreu um poeta.

Deixo-vos uma fotografia do dia em que faleceu Manuel António Pina. Um poeta que a minha ignorância ignorava, embora já o tivesse lido (pouco, no jornal), ouvido e visto, fugazmente, e por entre relampejos na TV, sem saber quem era, ora entrevistando Agostinho da Silva (eternizado numa colecção de DVD, ele lá está, sem que eu me lembrasse), ora de soslaio, inesperadamente em rápidos zapings, em que me deparei com ele, um dia, na 2. Não o conhecia.

Hoje vi o documentário na íntegra.

Da ponte, falarei noutro dia.

Ontem,


Nem mais um soldado para as colónias! (gritou um louco a fazer pouco)

Mas não vão para matar, antes isso. Vão para salvar, antes isso.

Pelo menos que os parcos soldos de todas as contribuições dos contribuintes e deste contribuinte também, que patrocinaram a sua educação e formação nas mais afamadas escolas e faculdades da pátria, lhes sirvam - já que a pátria os repele - para que se salvem, para que salvem outros, doutras pátrias…mas não nos servirão a nós, não nos salvarão a nós, os que contribuímos. E isso, também lamentamos.

Ficamos então cá com o ministro Gaspar, agradecido por tal contemplação da pátria que o agraciou com uma formação, para que nos servisse, para que nos salvasse, para que zelasse por todos nós…amém… enquanto não formos nós a partir...e ele continuar a ficar. Mas porque raio não parte ele?

E ficam as democráticas nomenklaturas partidárias, filhos, amigos e apaniguados, ainda que inúteis sejam. E a puta que os pariu a todos (pardon my french)!

Mas que pátria é esta, que tudo desperdiça? Que desgoverno é este? Que desperdício de recursos naturais, económicos e humanos é este?

Olhem para os campos, para o mar, para os homens. Uma desolação.

Mas quem é que geriu este jardim à beira-mar plantado e o transformou numa latrina? O que andaram a fazer todos estes anos – décadas! - os que diziam governar o país? E o que andam a fazer agora? Sabiam o que faziam? Sabem o que fazem?

E não nos venham dizer um dia, esses governantes, que afinal, precisamos é de importar enfermeiros para os nossos hospitais.

SACANAS!

quarta-feira, outubro 17, 2012

Chavez, o democrata & Bashar, o assassino

Tão depressa Chavez galvaniza, como rapidamente decepciona. Na sua fúria cega contra os EUA, acaba por apoiar criminosos de guerra como Bashar-al-Assad, e logo na primeira conferência de imprensa após o início do terceiro mandato da sua presidência. Diz que “Bashar é o governo legítimo”. Mas quem o legitimou? Diz que apoiar o Conselho de Transição é o mesmo que apoiar terroristas. Como se Bashar não fosse o verdadeiro terrorista. Diz que o Conselho de Transição anda a matar gente. E Bashar, que tem a maior força do seu lado – a força dos militares da Síria, incomparavelmente maior do que a do Conselho Nacional Sírio -, não anda a matar gente?

Bashar-al-Assad é um ditador, filho de um ditador a quem sucedeu após a morte, o seu pai Hafez al-Hassad, e governa Síria como se fosse um rei – uma espécie de rei Herodes da nossa Era -, mas a Síria não é um reino. Onde reside a legitimidade de Bashar-al-Assad? Numa reeleição (?) realizada em 2007, em que o seu partido concorreu sozinho?

Era bom que não nos esquecêssemos de como tudo isto começou.

Postamos aqui, a 11 de Junho de 2011, quando o povo sírio se começava a manifestar nas ruas e cidades por liberdade e democracia e começava a ser alvejado a mando do Bashar. Postámos aqui em Fevereiro de 2012, quando o povo sírio morria nas ruas e aqui quando já lutava nas ruas. Desde então a mórbida contabilidade do número de mortos não tem parado de aumentar e já ultrapassa os 30 000. Podíamos não ter chegado aqui. Bashar podia tê-lo evitado, se amasse verdadeiramente a Síria. Infelizmente, como todos os déspotas, ama mais o poder.

Reiteramos portanto, e mais uma vez, o nosso asco perante tal criatura que persiste em não abandonar o poder na Síria. A vida dele não vale a de uma criança síria. A força estava e está do lado dele. Por isso era ele que tinha a obrigação moral de abandonar o poder e convocar eleições justas e pluripartidárias. Não o fez. Preferiu avolumar a “bola de neve” da violência e das vítimas dum conflito que entretanto se tornou numa guerra civil. Há terroristas entre os opositores ao governo sírio? Agora há e cada vez mais. Não foi sempre assim. Mas Bashar-al-Assad supera-os a todos. Podia ter evitado a que chegássemos a este ponto mas não o fez. Preferiu ficar, preferiu matar.

Por isso, se vem agora o Chavez dizer os disparates que diz em apoio a Assad, isso só lhe fica mal. Mas não nos admiremos de ver democratas apoiarem ditadores. Esta é a realpolitik do mundo. Não apoiaram os democratas americanos, o general Pinochet? Não foram os democratas europeus dar apertos de mão, noutros tempos, a Kadhafi na sua tenda, na Líbia, ou não o acolheram na sua casa? E depois, não foram esses mesmos democratas que o mataram?

E assim aprendemos que uma coisa é a realpolitik e a outra é a nossa posição, que ainda pensamos pela nossa cabeça.

Bashar-al-Assad é um criminoso de guerra, os factos comprovam-no, e essa é a nossa convicção.

terça-feira, outubro 09, 2012

segunda-feira, outubro 08, 2012

Em democracia, há sempre alternativa!



«Este é um passo muito importante na construção da paz na Venezuela, da convivência de todos nós! (…)
Quero fazer-vos um apelo à unidade nacional e ao trabalho conjunto! Quero por isso fazer de novo um reconhecimento especial à liderança adversária que não se prestou aos planos desestabilizadores que alguns acarinhavam! É assim que se joga a democracia, impondo a voz da maioria, respeitando a voz da minoria!»

Hugo Chávez à multidão, no seu discurso de vitória, (os sublinhados são nossos). AQUI.

Certos historiadores e opinion makers intelectualmente desonestos, tendenciosos e ideologicamente comprometidos, escrevem as suas histórias deturpadas que a realidade, por vezes, rapidamente se apressa a desmentir. Leia-se, por exemplo, o que escreve o historiador Niall Ferguson sobre o “demónio” Chávez, no seu Civilization, The West and the Rest[1]. É preciso ler esta gente com espírito muito crítico. Queira-se ou não, Hugo Chávez é presidente da Venezuela, democraticamente eleito, num sistema pluripartidário. Não é um ditadorzeco sul-americano, como muitos nos querem fazer crer. É um democrata!

Para que não haja dúvidas, aqui ficam os resultados homologados pela Comissão Nacional de Eleições da Venezuela:

"O candidato Hugo Rafael Chávez Frías, obteve 7.444.082 (54,2%) votos, o candidato Henrique Capriles Radonski, obteve 6.151.544 (44,97%). A candidata Reina Sequera obteve 64.281 votos (0,46%). O candidato Luís Alfonso Reyes 7.372 votos (0,05%). Maria Josefina Bolívar obteve 6.969 votos (com 0,05%) e Orlando Chirinos 3.706 votos (0,02 por cento)", disse, o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela.”

É caso para dizer, também entre nós: em democracia, há sempre alternativa!

Basta que o queiramos, sem medo.



[1] Obra editada em Portugal: Niall Ferguson, Civilização – O Ocidente e os Outros, Civilização Editora, 2012.

domingo, outubro 07, 2012

Não é a relíquia que faz a fé, mas a fé que faz a relíquia


«Quando se visita um tesouro não é necessário aproximarmo-nos das relíquias com espírito científico, senão arriscamo-nos a perder a fé, porquanto notícias lendárias relatam que no século XII, numa catedral alemã, se conservava o crânio de São João Baptista com a idade de 12 anos.

(…)

Em suma,  não é a relíquia que faz a fé, mas a fé que faz a relíquia.»

Umberto Eco, Construir o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais, Gradiva, 2011, Pág. 96.

Roma

© AMCD

sexta-feira, outubro 05, 2012

O maravilhoso mundo plano*


Nas palavras de George Steiner, esse maravilhoso mundo do capitalismo benfazejo, hoje globalizado, no qual “o progresso irradiaria necessariamente a partir dos seus centros privilegiados acabando por tocar todos os homens” e que tanto deslumbra Thomas Friedman, não passa de um sarcasmo. Já em 1971 quando Steiner escreveu o que escreveu, não passava de um sarcasmo. Mas Friedman, que anunciou ao mundo em 2005, que o mundo era plano devido à globalização capitalista, facto que proporcionaria a todos um progresso nivelador, não deve ter lido Steiner. Pelo menos não consta da bibliografia.

Disse Steiner:

«Sabemos hoje, enquanto Adam Smith e Macaulay o não sabiam, que o progresso material participa numa dialéctica de destruição concomitante e que devasta irreparavelmente os equilíbrios entre a sociedade e a natureza. Os progressos técnicos, soberbos em si próprios, têm contribuído activamente para a ruína dos sistemas vivos elementares e das condições ecológicas do mundo. O nosso sentido do movimento da história já não é linear, mas o de uma espiral. Somos hoje capazes de conceber uma utopia tecnocrática e higiénica funcionando num vazio de possibilidades humanas.
O segundo aspecto do sarcasmo refere-se a um contraste. Já não admitimos a projecção, implícita no modelo clássico do capitalismo benfazejo, segundo a qual o progresso irradiaria necessariamente a partir dos seus centros privilegiados acabando por tocar todos os homens. As obscenidades supérfluas das sociedades desenvolvidas coexistem com o que parece ser um estado de fome endémico em grande parte da Terra. Com efeito, o progresso quanto às esperanças de vida individual e à duração desta, proporcionado pela tecnologia médica, alimentou o ciclo do excesso populacional e da fome. Muitas vezes, os bens e circuitos de distribuição necessários para a eliminação da fome, da miséria, encontram-se a postos, mas a inércia da cupidez ou da política não permitem a sua utilização. Em demasiados casos a nova tecnocracia não é só destruidora dos valores anteriores e alternativos como cruelmente incapaz de tudo o que não seja exercer-se em vista do lucro no seu horizonte limitado. Assim ficamos numa posição ambivalente, irónica, frente ao dogma do progresso e ao prodigioso bem-estar do qual somos tantos a fruir, hoje em dia, no Ocidente tecnológico.»

George Steiner, No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas para a Redefinição da Cultura, Relógio D’Água, 1992. P.77-78.

(*) Referência à obra de Thomas Friedman (2005),  O Mundo é Plano: uma Breve História do século XXI. Actual Editora.

O último Dia da República?


E não nos venham agora dizer, que é Dia da República sempre que o homem quiser.

Aí está o Dia da República, pela primeira vez na sua história, comemorado à porta fechada. Os representantes do povo de costas viradas para o povo. Bonito. Que os vejam pela TV. E o primeiro-ministro ausente, em plena viagem fugidia, foge do povo, da República, foge da República no último Dia.

Bom seria que em resposta, à mesma hora que lá dentro se engalanassem os discursos, o povo, cá fora, na Praça do Município, montasse palanque, e quem quisesse, livremente, da multidão ao palanque subisse, e fizesse o seu discurso laudatório e sorrisse.

Que se gritassem mil vivas à República!

quarta-feira, outubro 03, 2012

A verdadeira magnitude do problema


Os rendimentos do trabalho, entre outros, continuam a ser sugados, como se confirmou hoje, mais uma vez. Essa subtracção com origem na expansão descontrolada da super-bolha especulativa de 2008 – um autêntico buraco negro criado inadvertidamente pela especulação financeira na qual se envolveram os bancos e outras instituições financeiras, arrastou atrás de si, inicialmente, os “fundos de pensões dos trabalhadores, as poupanças das famílias, as primeiras e segundas amortizações e as reservas bancárias” (Edward Soja, 2009). O capital financeiro desbaratado na economia de casino especulativa superou então, em valor, a soma do PIB de todos os países do planeta. E é esta a verdadeira magnitude do problema. Esta é a razão de fundo pela qual são cada vez mais atingidos os salários e outros rendimentos gerados na economia real assim como as pensões. Tudo é sugado para esse buraco negro, pois os bancos e as instituições financeiras precisam recuperar as suas perdas. Contudo, o buraco é demasiado grande e é por isso que esta história não acaba aqui…

 Aguardemos os próximos capítulos.

Abaixo traduz-se um excerto de um texto de Edward Soja (2009), sobre a verdadeira magnitude do problema (optou-se por inserir depois o excerto original, pois a tradução pode conter sempre imperfeições, pelo que se sugere a consulta do original).

Diz então Edward Soja (2009):

«O que aconteceu em 2008 girou em torno desta versão enormemente expandida e distorcida do capital financeiro, melhor definido através do acrónimo largamente usado FIRE – “Financial services, Insurance and Real Estate” (serviços financeiros, seguros e imobiliário). A contribuição do sector FIRE para o produto interno bruto e para o emprego geral, cresceu a uma taxa extraordinária nas últimas três décadas, contudo o seu de desenvolvimento para lá dos limites normais da economia real foi ainda mais extraordinário. A “bolha” da economia baseada no crédito foi-se insuflando com triliões de dólares agravada com valores de troca fictícios na forma de “hedge funds, credit default swaps, private equity funds” e outras formas electronicamente recicladas de dinheiro e crédito. A actividade bancária tradicional, a qual tinha sido tão drasticamente reestruturada e reorganizada ao longo dos últimos vinte anos ao ponto de tornar-se quase irreconhecível, foi absorvida pela bolha em expansão a qual se tornou muito maior do que a combinação de todos os produtos internos brutos de todos os países da Terra.
Os fundos de pensões dos trabalhadores, as poupanças das famílias, as primeiras e segundas amortizações e as reservas bancárias – qualquer fonte de capital, ainda não absorvida pelos investimentos de alto risco, foram sugados por esta super-bolha virtual e desregulada dos serviços financeiros, seguros e imobiliário. A ideologia neoliberal, posta em prática nos anos Tatcher-Reagan e acelerada nas últimas duas décadas, espalhou o evangelho da privatização, da desregulação, do “pequeno” governo, [o que abdica da sua função de estado social ou apoio social], da magia do mercado em quase todo a parte no mundo, facilitado pela revolução das tecnologias de informação e comunicação, transmitido através da globalização do capital, do trabalho e da cultura, e mantido por exércitos ideológicos de spin doctors. Quase toda a gente acreditou. Afinal, a palavra “crédito” deriva da palavra latina credo, ou seja, “acredito”.»

Edward Soja, “Resistance after the Spatial Turn” in
Jonathan Pugh (Edit.), What is Radical Politics Today?, Palgrave Macmillan, 2009, pág. 70-71

(traduzido por AMCD, os sublinhados são nossos)

Segue-se o original:

terça-feira, outubro 02, 2012

Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm (1917-2012)

Outro Mestre que parte (partiu ontem). O da Era dos Extremos e doutras Eras que estudou e que nos deu a conhecer. Era o melhor historiador britânico da actualidade. Metia o Sr. Niall Ferguson no bolso. Marxista. Para Hobsbawm a Era dos Extremos teve origem em 1914 e cessou em 1991. O eclodir da Iª Guerra Mundial e o fim da URSS eram os marcos que limitavam o século XX de Hobsbawm. Quais cem anos?!

Neste blogue Hobsbawm já nos tinha servido de inspiração. AQUI.

Que descanse em paz.

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