terça-feira, julho 11, 2023

O país dos bufos


A Inquisição oficializada principalmente a partir da Contra-Reforma prolonga-se até ao século XIX em Portugal. O Pombalismo terá também essa faceta inquisitorial bem patente na sua polícia específica, assim como as décadas de vigilância fascista no século XX, ou, embora com aspectos bem distintos, o Estado democrático exerce também o controlo quase absoluto da sociedade nos últimos 50 anos.

A Inquisição transformou-se num modelo mental e estruturou de modo profundo o nosso plano de comportamentos, as dimensões morais e até judiciais.

João Maurício Brás, O Atraso Português, Guerra e Paz, pág. 140

 

Cumpre-se por obediência e medo, na maior parte das vezes irracional, não por respeito ou por se considerar que seguir determinado caminho é o mais correcto e eficaz. Mexericos e bisbilhotices, a má-língua no trabalho e na vizinhança, a pequena calúnia, são vestígios de uma cultura de resquícios inquisitoriais.

João Maurício Brás, O Atraso Português, Guerra e Paz, pág. 129

 

Continuamos a construir os nossos panópticos sociais sob a égide da governação do Partido Socialista.

Temos agora um Portal da Delação, digo, Portal da Denúncia (procedimento muito socialista e até nacional-socialista ou estalinista).


Maravilhoso mundo novo. Aos poucos a liberdade e a privacidade vão perdendo território para o controlo social. Que ideia maravilhosa essa a de os cidadãos controlarem os cidadãos.

Suspeito que alguns de nós têm no seu DNA um gene mais desenvolvido: o gene inquisitorial. Em Portugal a Santa Inquisição durou até ao século XIX. Um período tão prolongado de controlo das ideias não poderia deixar de marcar a genética social e a de muitos portugueses.

Com o Portal da Denúncia, far-se-á da pequena calúnia grande. Como a imagem sugere, o pequeno caluniador tem agora um altifalante para se fazer ouvir.  Para nosso bem e com cobertura governamental.

domingo, julho 09, 2023

Tordesilhas

 


Daqui.

A soberba desta gente. Nem se dão conta. Na sua cabeça o mundo pode perfeitamente ser dividido em dois, qual novo Tordesilhas. “O mundo é suficientemente grande para os EUA e a China”. É traçar um meridiano para que não se atropelem na sua hegemonia sobre os demais. Que grandes que eles são.

domingo, maio 28, 2023

sábado, abril 29, 2023

Balada para os poetas andaluzes de hoje

 «Me marché con el puño cerrado… Vuelvo con la mano abierta.»

RA


«Balada para los poetas Andaluces de hoy»


¿Qué cantan los poetas andaluces de ahora?

¿Qué miran los poetas andaluces de ahora?

¿Qué sienten los poetas andaluces de ahora?

Cantan con voz de hombre, ¿pero dónde los hombres?

Con ojos de hombre miran, ¿pero dónde los hombres?

Con pecho de hombre sienten, ¿pero dónde los hombres?

Cantan, y cuando cantan parece que están solos.

Miran, y cuando miran parece que están solos.

Sienten, y cuando sienten parece que están solos.


¿Es que ya Andalucía se ha quedado sin nadie?

¿Es que acaso en los montes andaluces no hay nadie?

¿Que en los mares y campos andaluces no hay nadie?

¿No habrá ya quien responda a la voz del poeta?

¿Quien mire al corazón sin muros del poeta?

¿Tantas cosas han muerto que no hay más que el poeta?


Cantad alto. Oiréis que oyen otros oídos.

Mirad alto. Veréis que miran otros ojos.

Latid alto. Sabréis que palpita otra sangre.

No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo

encerrado. Su canto asciende a más profundo

cuando, abierto en el aire, ya es de todos los hombres.


Rafael Alberti.


De: «Ora marítima» –  1953


***


Balada para os poetas andaluzes de hoje

 

Que cantam os poetas andaluzes da agora?

Que olham os poetas andaluzes da agora?

Que sentem os poetas andaluzes da agora?

 

Cantam com voz de homem, - mas onde estão os homens?

Com olhos de homem olham, - mas onde estão os homens?

Com peito de homem sentem, - mas onde estão os homens?

 

Cantam e quando cantam parece que estão sós.

Olham e quando olham parece que estão sós.

Sentem e quando sentem parece que estão sós.

 

Será que a Andaluzia está já sem ninguém?

Nos montes andaluzes não haverá ninguém?

Nos mares e campos andaluzes não haverá ninguém?

 

Não haverá já quem responda à voz do poeta?

Quem olhe o coração sem muros do poeta?

Tantas coisas morreram que não há mais que o poeta?

 

Catai alto. Ouvireis que ouvem mais ouvidos.

Olhais alto. Vereis que olham outros olhos.

Pulsai alto. Sabereis que palpita um outro sangue.

 

Não é mais fundo o poeta em seu subsolo escuro

encerrado. Seu canto ascende mais profundo

quando, aberto, no ar, é de todos os homens.

 

Rafael Alberti (trad. por José Bento)

Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, Assírio e Alvim, 1985


***

Nunca

Ken Follet, Nunca, Editorial Presença, 2021

ᴪ ᴪ ᴪ ᴪ ᴪ


O fim é certo como o destino.

(E nada mais me apraz dizer. Apenas que é uma boa leitura e que entretém)

sexta-feira, abril 28, 2023

O Douro


      Porto, Dezembro de 2022                © AMCD

***

        O Douro

 

        Não é a tristeza que encontro

        Quando caminho pela margem

        Do Douro, no Porto.


        O seu vinho, as suas gentes e os verdes olhos das minhotas,

        Aquecem-me o coração.


        Nem o céu plúmbeo

        Me pesa.


        Ali consigo esquecer a dor.

        Como um ópio que me invade o corpo,

        Uma aguardente.

        Esqueço tudo,

        Até a solidão.

quinta-feira, abril 27, 2023

Píncaro adiado

 

      Serra da Estrela, Abril de 2023                                                          © AMCD


No píncaro do território de Portugal Continental jazem duas torres degradadas e uma promessa recente: “Investimento de €30 milhões cria um observatório, residências científicas, áreas comerciais e um teleférico para ligar três aldeias do maciço central”. Assim reza o subtítulo da notícia do semanário Expresso. Reparai no tempo do verbo criar. Deveria ler-se “criará” ou “irá criar”. Não! A coisa já está feita!

Eis o expoente máximo de um país, num dos seus lugares mais simbólicos: degradação e promessas. 

Amanhã é que é.

quarta-feira, abril 26, 2023

Medvedev‎ no epicentro

  

O futebol é a zombaria da guerra, campal ou política.

(Ortega y Gasset)

 

Medvedev‎ arenga no hangar:

5 000º Kelvin, calor nuclear,

350 m/s, a deslocação do ar

(e tudo o vento levou, no epicentro nuclear)


Radiação penetrante, radiação ionizante

Impulso electromagnético, explosão nuclear.

Arenga o Medvedev, que nos quer intimidar.

 

Tenham medo, muito medo.

Ui, ui, que medo, Medvedev.

(Faz isso não)

 

(Enquanto isso, a Europa vira o cu a Medvedev

E abanca no estádio, que é dia de futebol.)

 

Vá falando Medvedev, vá falando.

Arengando, não faz mal.

Cova da Beira ao alvorecer

 

          Alvorada em Abril, na Cova da Beira                 AMCD ©

            

          Quando tiver de zarpar, fá-lo-ei pela alvorada. Rumarei a Oriente, pela terra imaculada.                          

terça-feira, abril 25, 2023

“Investir no nosso planeta”

 


Lido no Público de 21 de Abril:

 

«Num artigo publicado em Fevereiro, investigadores chilenos mostram que os seres humanos e os animais domésticos e pecuários superam em muito os animais selvagens, que representam 6% da biomassa de mamíferos da Terra.»

 

Maria Amélia Martins-Loução, “Investir no nosso planeta”, Público 21/04/2023, pág. 27


***

Tem-se investido no planeta, que consideramos nosso, contudo nem o planeta é nosso (quem somos nós para nos apropriarmos dele? E, no entanto, é isso que fazemos, vezes sem conta, sem nos apercebermos que nós é que somos do planeta), nem se tem investido pelo planeta. Mas muito se investe no planeta: em ranchos e unidades industriais, unidades agro-pecuárias, criação de cães e gatos, vacas e porcos, construção de minas e unidades de extracção de combustíveis fósseis. Eucaliptais, palmeirais, extensos campos de soja, modernas frotas de pesca. O planeta está cheio de investidores, gestores, empreendedores, visionários do potencial ganho a retirar do “capital natural” e ecossistémico, neoliberais e “homens do futuro”, para parafrasear Sloterdijk, aqui.

 

As palavras “investir”, “gerir” remetem para o léxico científico económico e empresarial. O “património natural”, como bem diz a professora, é delapidado, porque os investidores acima referidos não o veem como tal. Para eles, o “património natural” é “capital natural”. Um filão a explorar.

 

Talvez precisemos de uma revolução no pensamento: deixar de considerar nosso o planeta – a vida que nele habita, entre a qual nos contamos, e a que estamos a destruir, pertence ao planeta. Talvez não se trate de gerir o planeta, mas de zelar por ele, impor vastos espaços onde os cobiçosos gestores não ponham a pata (perdoem-me a expressão plebeia). Dirão que a determinação desses espaços, livres da acção e do olhar cobiçoso do capitalista, também passa por uma gestão do espaço. Sim, mas talvez seja necessário algo mais do que uma simples gestão.

25 de Abril em 2023


Como uma vela que se acende num templo antigo, num ritual eternamente repetido, celebramos a memória da Liberdade. A Liberdade. Celebramos o dia em que a Liberdade saiu à rua.

Hoje discursam amigos e inimigos da Liberdade. Ouço-os na assembleia. A Liberdade e a Democracia assim o permitem.

segunda-feira, abril 24, 2023

Para quem não sabe o que o neoliberalismo é

 


Detalhe da capa do semanário Expresso, 14 de Abril de 2023 

(excepto o balão amarelo e o rectângulo vermelho, que são destaques nossos )

***

E é escusado argumentar com esta gente. Para eles o neoliberalismo é um credo, e, portanto, são surdos a qualquer contra-argumento racional ou científico.

Como uma erva daninha, o credo neoliberal defendido pelos lacaios das elites dominantes em jornais mui burgueses e liberais como o Expresso - burguesitos à espera das migalhas caídas da mesa do patrão e de um afago na sua fiel e canina cabeça – teima em medrar, ainda que denunciado vezes sem conta na sua injustiça.

Diga-se de passagem, que não são todos os que lá escrevem, mas nós sabemos quem são esses “alegres papagaios” e eles também sabem quem são. Os de servil escrita.


sábado, abril 22, 2023

O crepúsculo das estâncias invernais

 

           Serra da Estrela, Abril de 2023                                                          © AMCD    

O Inverno retira-se uma vez mais, até um dia deixar de regressar. Tanto aqui como nas estâncias alpinas e noutras montanhas das latitudes médias, assistimos ao crepúsculo das estâncias invernais. A paisagem sempre mudou inevitavelmente, e agora, aceleradamente. Os helvéticos já se debatem com o retrocesso dos glaciares. Preciosos glaciares. Recursos turísticos perdidos para todo o sempre. E nós, nesta serra, que não se alça aos 2 000 metros de altitude, ansiamos pela neve, mas a neve já não vem.

sexta-feira, abril 21, 2023

O urso da serra

     Serra da Estrela, Abril de 2023                                                          © AMCD           

Lá em cima, na serra, há um urso contemplativo e melancólico, principalmente se for observado a partir de um certo ângulo. Mas atenção à aproximação, não vá o animal espantar-se e sair por ali a correr espavorido, acabando por rebolar pelas encostas.

sábado, fevereiro 25, 2023

Roma

 

Ferdinand Addis, Roma, História da Cidade Eterna, Crítica, 2022.

⭐⭐⭐⭐

Eis-nos lançados nas ruas de uma cidade antiga. Tão antiga que se diz eterna. Ali nos cruzamos com personagens de todas as eras. Assistimos às assembleias entre a plebe, frente ao templo de Júpiter, no topo do monte Capitolino. Vimos passar César na sua biga triunfal e o escravo que, atrás dele, de vez em quando se lhe assoma ao ouvido para lhe murmurar que é apenas um homem, à passagem entre a multidão que o aclama como se fosse um deus.

 

Ali nos cruzámos com Marco Aurélio, Séneca, Ovídio e Nero e muitos mais. Mas não ficámos apenas naquele tempo romano. Acabamos por atravessar os tempos, naquela cidade. Chegámos a combater entre os camaradas de Garibaldi. Também ali deparámos com Mussolini, já no século XX, uma besta sexual com o QI de um sapo. Ele e a sua última amante, executados e dependurados. E Fellini e a sua Dolce Vita.

 

A história de Roma é também a história da civilização Ocidental. Está embrenhada nela. Vindos da recém-descoberta América, os marinheiros de Colombo inauguram a propagação da sífilis pela cidade das prostitutas. Isto para dizer que também as longínquas descobertas ecoaram nas ruas e nas vidas dos cidadãos de Roma.

 

Muito haveria para contar dos ilustres personagens que desfilaram na história da cidade.

 

Ferdinand Addis consegue colocar-nos lá, no espaço e no tempo. Viajamos por Roma desde a sua origem até ao século XX e com os romanos. Somos espectadores, somos participantes.

 

Um livro excelente, repleto de acção e movimento, dinâmico, que se lê como um romance.

 

*****

Uma passagem:

«Enquanto os godos recuavam, as balistas nas muralhas entraram em acção. Estas eram uma espécie de bestas gigantescas: máquinas de arremesso de flechas com dois braços equipados com molas de torsão, capazes de disparar virotes curtos e grossos a distâncias além do que a vista alcançava. Estas máquinas aterrorizavam os godos. Na Porta Salária, por onde a velha estrada do sal saía da cidade, um nobre godo que se afastou demasiado das suas linhas foi atingido por um virote disparado por uma equipa de balista com a pontaria afinada. O virote trespassou-lhe a couraça e pregou-o a uma árvore, deixando-o a baloiçar-se e a contorcer-se, enquanto os godos mais próximos, demasiado assustados para o ajudarem, tropeçaram uns nos outros com a pressa de ficarem fora do alcance.»

 

Ferdinand Addis, Roma, História da Cidade Eterna, Crítica, 2022, pp. 244-245

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Os dias do fim

Canção

O último pássaro

canta nos álamos.

A luz fatigada

 tropeça nos ramos.

A terra é apenas

 memória de lábios.

Ah, canta, canta,

rouxinol da água.

 

                                   Eugénio de Andrade (1961)

 

***

Um dos poemas para estes dias é a canção do último pássaro. É difícil discernir o espírito do tempo em que vivemos quando vivemos neste tempo. O que virá? O precipício sobre o mar rumorejante ou a luz dos prados verdejantes? Já cantarão os últimos pássaros neste planeta fatigado, de solo ressequido? Um último rouxinol canta antes da longa noite escura? 


O que virá?

 

O silêncio.

 

A Terra nem memória será.

 

Epílogo

 

Devastámos a Terra, conspurcámos o mar, poluímos o céu. Nem as profundezas e os abismos escaparam ao fluxo e refluxo das nossas cloacas. Nem as mais altas montanhas.

 

A Terra devastada. O mar conspurcado. O céu poluído. A vida à beira da extinção.

 

Depois do canto do último pássaro, sabemos que advirá o silêncio. Daremos entrada no reino sombrio das criaturas da noite, enquanto remanescerem criaturas. Uma longa noite, repleta de horrores. Os últimos seres, almas, espíritos e medos. Mutantes sem memória. E por fim, nem a memória restará.


Soprará o vento nas ruínas das cidades.

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