Andam lunáticos à solta pela
cidade nocturna com pincéis e baldes de tinta negra. Nas noites de lua cheia ou
outras luas, atacam os muros com frases indecifráveis ou que se dão a múltiplas
interpretações e significações. Frases para fazer pensar, a quem gosta de
pensar, quando vagueia pelos passeios dos subúrbios e das cidades. Frases para flâneurs e voyeurs.
Eis algumas frases, escritas em
antigos e verdadeiros graffiti:
TIRO NO ESCURO
O que significa isto? Um dito
racista? Um tiro num africano? Não. Uma aposta incerta, um “tiro no escuro”? Um
passo cego que pode conduzir ao abismo? Um estampido ecoando na noite? Uma bala
perdida que, caprichosamente, pode atingir qualquer um, qualquer inocente? Mas
um tiro não tem que significar necessariamente um estampido. Há quem use
silenciador. Ou ainda, será alguém que furta, que tira, a coberto da noite, e o afirma? O “escuro”
oculta, mas o “tiro”, ouvido, revela algo. Remete para o perigo de ser
alvejado. Remete para a ameaça de ser atingido por um raio, vindo sabe-se lá de
onde. Quando se recebe uma chapada na escuridão, ficamos sem saber a quem
acometer. Ficamos indefesos ante a chapada oculta, inesperada. Na escuridão
estamos cegos.
***
Outra frase, esta lida lá para os
lados das Amoreiras:
ENTRE O DIZER E O FAZER, HÁ MUITO QUE FAZER.
Esta tem o seu interesse. Na
verdade dizer já é fazer, ou não é assim? Quando se diz, já se actua. Dizer, implica
um comportamento observável, uma acção: escrever, falar, dizer…Mas quem a
escreveu deve ser alguém de acção, que paradoxalmente diz-nos primeiro que, “entre o dizer e o fazer, há muito que fazer”,
e di-lo escrevendo. Fá-lo escrevendo.
Fá-lo dizendo.
Mas no caso, parece querer
fazer-se uma distinção entre a palavra e a acção. Mas fazer o quê? Uma
revolução? Uma reforma? Há muito que fazer para preparar uma
revolução. Dizer, pode manifestar uma intenção, mas da intenção à acção, há
muito que fazer. O nosso povo está prenhe de intenções, mas o primeiro a atirar
a pedra levantada da calçada é quase sempre um estrangeiro profissional em motins.
A MAIOR ARMA DO OPRESSOR É A CABEÇA DO OPRIMIDO.
Esta é decerto, coisa de
marxistas. Os termos “opressor” e “oprimido” fazem parte desse discurso
dialéctico. Desde a antiguidade, os escravos, os servos e os proletários são,
segundo Marx, os oprimidos deste mundo. O discurso pós-marxista detectou outros
oprimidos que atravessam as classes sociais definidas por Marx, e com isso
pretende tirar validade à divisão marxista das sociedades em classes. Prefere
falar de grupos identitários. E que oprimidos foram esses, que o discurso
marxista não relevou? As mulheres, os homossexuais, os segregados devido à
etnia ou à raça, etc. Porém, um marxista pode contestar isto. Afinal, a classe
dos escravos não contém as escravas, só para dar o exemplo? E a dos servos, as
servas? E a dos proletários, as proletárias? Mas a verdade é que as mulheres
foram segregadas e oprimidas, independentemente da classe social a que
pertenciam. Só assim se justifica a sua ausência da história do pensamento,
para não dizer da história da arte, e, salvo raras excepções (algumas rainhas que,
não estando à sombra de nenhum rei protagonizaram os destinos do seu povo) de
toda a história. É caso para dizer que das mulheres não reza a história. A
História tem sido uma história de homens. Não nos admiremos portanto com o
surgimento dos Estudos de Género na actual Universidade. As mulheres chegaram à
Academia quase 2500 anos depois dela ter sido fundada por Platão.
A Escola de Atenas,
de Rafael.
(Onde estão as mulheres?
Temos duas estátuas marmóreas a enfeitar o
friso.)
Mas em relação ao dito de que “a
maior arma do opressor é a cabeça do oprimido”, não tenhamos dúvida que assim
é. Já nos referimos a este dito
aqui.
***
O MORAIS FOI ÀS PUTAS
(escrito numa parede, em Almada)
Ai o Morais, o Morais, que anda
por aí a pregar a moral e os bons costumes. Afinal o Morais “foi às putas”.
Esta bem poderia ter sido escrita por um antigo cínico, por um Diógenes dos
nossos tempos. Uma manifestação contra os falsos pregadores, os que apregoam uma
coisa e fazem outra. É o que há mais por aí. É como a história do frei Tomás e
do “faz o que ele diz, não faças o que ele faz”. Ou então faz e depois não te
queixes. Esta frase do Morais é um tratado kínico.
[Este post irá sendo acrescentado com mais ditos escritos nas paredes urbanas e suburbanas, por aí lidos nas deambulações urbanas e suburbanas]